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STJ, Ac. de 14 de Julho de 2025

STJ, Ac. de 14 de Julho de 2025

Ver Ficha

Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 14 Jul. 2025, Processo 1994/20.5T8GMR.G1.S1

Relator: Júlio Manuel Vieira Gomes.

Processo: 1994/20.5T8GMR.G1.S1

JusNet 8388/2025

Não é suficiente para a prova do nexo de causalidade entre a conduta do trabalhador e o acidente a demonstração de que este se achava embriagado no momento da ocorrência do mesmo

Resumo

ACIDENTE DE TRABALHO. TAXA DE ALCOOLEMIA. DESCARACTERIZAÇÃO. É sobre a entidade responsável pela reparação que recai o ónus da prova dos factos descaracterizadores do acidente, tendo em conta que estes constituem factos impeditivos do direito invocado pelo sinistrado ou seus beneficiários. Nos casos em que se prova o sinistrado apresenta uma taxa de alcoolemia elevada, tal demonstração não é suficiente para que se deva considerar provado o nexo de causalidade. No caso dos autos, o facto de uma testemunha ter visto o trabalhador a cambalear da última vez que subiu ao telhado – sendo que ninguém testemunhou que o visse a cambalear quando trabalhava pouco tempo antes – não se afigura relevante, já que se pode cambalear por muitos motivos, por exemplo, em razão do cansaço, de uma tontura ou indisposição súbita e momentânea. Basta ter presente que mesmo uma pessoa sóbria pode cair de um telhado inclinado. Ora, não se sabendo o porquê do cambalear, tal como não se sabendo nem nunca se podendo saber a causa da queda, da qual resultou a morte do trabalhador, há que concluir que o acidente não deve ter-se por descaracterizado.

Disposições aplicadas

L n.º 98/2009, de 4 de Setembro (regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais) (JusNet 1961/2009) art. 14.1 c)

D 10 de Abril de 1976 (Constituição da República Portuguesa) (JusNet 7/1976) art. 59.1 f)

Jurisprudência relacionada
Em sentido equivalente:

Ver JurisprudênciaSTJ, Ac. de 15 de Novembro de 2006 (JusNet 8653/2006)

Ver JurisprudênciaSTJ, Ac. de 26 de Junho de 2019 (JusNet 4487/2019)

Ver JurisprudênciaTRC, Ac. de 14 de Janeiro de 2022 (JusNet 320/2022)

Texto

I. Cabe ao empregador ou ao segurador o ónus da prova dos factos descaracterizadores do acidente, tendo em conta que estes constituem factos impeditivos do direito invocado pelo sinistrado ou seus beneficiários.II. Não é suficiente para a prova do nexo de causalidade entre a conduta do trabalhador e o acidente a demonstração de que este se achava embriagado no momento da ocorrência do mesmo.III. Tendo o trabalhador morrido na sequência da queda de um telhado quando se encontrava sozinho no cimo do mesmo, não é possível apurar qual foi em concreto a causa da queda e numa situação de incerteza sobre o que em concreto ocorreu não se deve privar o trabalhador da proteção contra acidentes de trabalho, constitucionalmente consagrada.

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

1.Relatório

AA e BB, respetivamente, unida de facto e filho do sinistrado CC, intentaram ação especial emergente de acidente de trabalho contra Companhia de Seguros Allianz Portugal S.A e D... Unipessoal, Lda., peticionando a final o seguinte:

"Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e em consequência:

a) Em caso de responsabilidade agravada, ser a 2ª Ré condenada a pagar à 1ª A. uma pensão anual, vitalícia e atualizável de 10.317,80€, com início em 25/04/2020, dia seguinte ao da morte, que passará para 10.420,98€ a partir de 01/01/2022 e ao 2º A. a pensão anual temporária e atualizável de 8.254,24€, com início em 25/04/2020, atualizável, até perfazer 18, 22 ou 25 anos, conforme venha a frequentar o ensino secundário ou equiparado, ou ainda o ensino superior, ou sem limite de idade no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho; e

b) Ser a 1ª Ré condenada a pagar à 1ª A. a pensão anual, vitalícia e atualizável de 2.977,20€, com início a 25/04/2020, até perfazer a idade de reforma por velhice, data em que passará para 3.969,60€, atualizada para 3.006,97€ a partir de 01/01/2022 e ao 2º A. a pensão anual e atualizável de 1.984,80€, com início em 25/04/2020, que passará para 2.004,65€ a partir de 01/01/2022, sendo 79,55€ da responsabilidade da 2ª Ré;

c) Não se verificando responsabilidade agravada, serem as RR. condenadas a pagar à 1ª A. a pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, o que desde já requer, de 3.095,34€, com início a 25/04/2020, até perfazer a idade de reforma por velhice, data em que passará para 4.127,12€, sendo 2.977,20€ da responsabilidade da 1ª Ré e 118,14€ da responsabilidade da 2ª Ré; e

d) Serem as Rés condenadas a pagar ao 2º A. a pensão anual e atualizável de 2.063,80€, com início em 25/04/2020, que passará para 2.064,35€ a partir de 01/01/20222, sendo 79,55€ da responsabilidade da 2ª Ré, até perfazer 18, 22 ou 25 anos, conforme venha a frequentar o ensino secundário ou equiparado, ou ainda o ensino superior, ou sem limite de idade no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho;

e) Serem as RR. condenadas a pagar aos AA. os valores relativos a deslocações, despesas de funeral e subsídio de morte no valor total de 7.846,28€;

f) Serem as RR. condenadas a pagar aos AA. juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos sobre todas as prestações, desde a data dos respetivos vencimentos até efetivo pagamento; e ainda,

g) Serem as RR. condenadas a pagar as custas e demais encargos legais."

A Ré Seguradora contestou.

Os Autores responderam.

Foi proferido despacho saneador.

Realizou-se audiência final.

Por Sentença de 24.12.2024 foi decidido o seguinte:

"IV. Dispositivo

Assim, e nos termos expostos, julgo a ação procedente por provada e, consequentemente:

I. condeno a seguradora «Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.» no pagamento, sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (art.º 135.º do Código de Processo do Trabalho):

a) à autora AA:

i) da quantia de 2 896,15€ (dois mil, oitocentos e noventa e seis euros e quinze cêntimos), a título de subsídio por morte;

ii) do capital de remição da pensão anual e vitalícia no montante de 2 977,14€ (dois mil, novecentos e setenta e sete euros e catorze cêntimos), desde 25/04/2020 e até perfazer a idade da reforma por velhice, pensão aquela que deve ser atualizada em 01/01/2022 para o valor de € 3 006,91 e em 01/01/2023 para € 3 259,49, e, após essa data ou no caso de verificação de deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho, da pensão anual e vitalícia de 3 969,53€ (três mil, novecentos e sessenta e nove euros e cinquenta e três cêntimos), a ser paga na residência da beneficiária, em prestações mensais correspondentes a 1/14 da mesma, sendo nos meses de junho e novembro acrescidas de uma outra prestação também equivalente a 1/14 da pensão anual;

b) ao autor BB:

i) da quantia de 2 896,15€ (dois mil, oitocentos e noventa e seis euros e quinze cêntimos), a título de subsídio por morte;

ii) da pensão anual e temporária no montante de 1 984,76€ (mil novecentos e oitenta e quatro euros e setenta e seis cêntimos) desde 25/04/2020 até à data em que completar 18 anos de idade ou até aos seus 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, a ser paga na residência do beneficiário ou dos seus familiares, em prestações mensais correspondentes a 1/14 da mesma, sendo nos meses de junho e novembro acrescidas de uma outra prestação também equivalente a 1/14 da pensão anual, pensão aquela que deve aquela ser atualizada em 01/01/2022 para o valor de € 2 004,61 e em 01/01/2023 para € 2 173,00;

II. condeno a entidade empregadora «D... Unipessoal, Lda.» no pagamento, sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (art.º 135.º do Código de Processo do Trabalho):

a) à autora AA:

i) do capital de remição da pensão anual e vitalícia no montante de 36,16€ (trinta e seis euros e dezasseis cêntimos), desde 25/04/2020 e até perfazer a idade da reforma por velhice e de 48,21€ (quarenta e oito euros e vinte e um cêntimo) a partir daquela data ou no caso de verificação de deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho, pensão aquela que deve aquela ser atualizada em 01/01/2022 para o valor de € 36,52 e em 01/01/2023 para € 39,59;

b) ao autor BB:

i) da pensão anual e temporária no montante de 24,11€ (vinte e quatro euros e onze cêntimos) desde 25/04/2020 até à data em que completar 18 anos de idade ou até aos seus 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, a ser paga na residência da beneficiária ou dos seus familiares, em prestações mensais correspondentes a 1/14 da mesma, sendo nos meses de junho e novembro acrescidas de uma outra prestação também equivalente a 1/14 da pensão anual, pensão aquela que deve aquela ser atualizada em 01/01/2022 para o valor de € 24,35 e em 01/01/2023 para € 26,40.".

A Ré Seguradora interpôs recurso de apelação.

Por Acordão de 23.01.2025, o Tribunal da Relação de Guimarães considerou procedente o recurso e determinou a absolvição da Ré Seguradora dos pedidos.

Embora tal não seja referido no Dispositivo, o Tribunal da Relação aditou o seguinte facto ao elenco da matéria de facto assente:

"O Sinistrado acedeu ao telhado e caminhou sobre o mesmo de forma cambaleante.".

Os Autores interpuserem recurso de revista. O seu recurso apresenta as seguintes Conclusões:

1. Afastada que está a possibilidade de esta mais Alta Instância se imiscuir no apuramento dos factos efetuado pelas instâncias ou censurar o não uso pela Relação dos seus poderes de alteração das respostas em tal sede proferidas pelo Tribunal "a quo", questões que exorbitam dos poderes de cognição e sindicância deste Tribunal, há que verificar se a base material factual de que partiram as instâncias é ou não é suficiente para espaldar o juízo jurídico-substantivo a final emitido;

2. 2- Destarte, o acórdão recorrido revogou na ordem jurídica a sentença proferida pela 1ª instância, absolvendo a recorrida Seguradora dos pedidos formulados;

3. 3- O thema decidendum consiste em saber se atento o facto de o sinistrado se deslocar no telhado cambaleando e apresentar uma taxa de álcool de pelo menos 1,73g/l, é motivo mais que suficiente para descaracterizar o acidente de trabalho ocorrido;

4. O douto acórdão recorrido considera que conjugando o grau de alcoolemia com o facto de andar a cambalear no telhado, pode concluir-se, tendo em conta as regras da experiência comum, com muito elevado grau de probabilidade, que foi a ingestão do álcool pelo sinistrado a causa da queda morta;

5. Ora, a descaracterização do acidente de trabalho exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (a) existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou previstas na lei; (b) violação, por ação ou por omissão, dessas condições, por parte da vítima; (c) que a atuação desta seja voluntária e sem causa justificativa; (d) que exista um nexo de causalidade entre essa violação e o acidente.

6. Da factualidade apurada não é possível com relativa segurança que não existiu qualquer outra causa para a ocorrência do acidente, designadamente se houve ou não qualquer fator externo na origem da queda, prova que competia à Seguradora/Recorrida;

7. Pois, para descaracterizar um acidente de trabalho, quando o sinistrado apresenta álcool no sangue, é necessário demonstrar, por quem tem esse ónus, a existência do nexo de causalidade entre estado e a verificação

8. Nada nos presentes autos nos permite concluir que a queda do sinistrado se deveu única e exclusivamente ao estado alcoolizado em que se encontrava, ou seja, se o sinistrado não tivesse alcoolizado o acidente não teria eclodido;

9. Atenta a factualidade provada e não provada, não se pode concluir que a mera embriaguez do sinistrado tenha sido a causa da sua queda e que era por isso que cambaleava (atenta a inclinação do telhado), nem é possível afirmar com relativa segurança que não existiu qualquer outra causa para a ocorrência do acidente, desconhecendo-se em absoluto porque é que o sinistrado caiu no solo;

10. E, não tendo a Seguradora demonstrado a factualidade que o determinaria, não permitindo a matéria de facto provada estabelecer o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez e o acidente, não se pode deixar de concluir pela caracterização do sinistro como sendo de trabalho;

11. E pela sua reparabilidade pela Seguradora/Recorrida, o que afasta per si a alegada descaracterização do acidente com fundamento na citada al. b) do n.o 1 do artigo 14º da LAT.

A Ré Seguradora contra-alegou.

Em cumprimento do disposto no artigo 87.º, n.o 3 do Código do Processo de Trabalho, o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Fundamentação

De Facto

Foram os seguintes os factos provados nas instâncias:

A) No dia 24/04/2020, pelas 16h00, na Travessa ..., freguesia de ..., do concelho de ..., CC, pai do 2.º autor, quando se encontrava a trabalhar numa obra de construção civil como servente, sob as ordens, direção, fiscalização e contra retribuição da 2.ª ré (entidade patronal), sofreu um acidente de trabalho.

B) Na referida data, hora e local, o sinistrado subiu ao telhado da habitação com recurso a uma escada de mão que colocou sobre uma varanda, ao nível do 2.º piso, na fachada mais a sul, e caiu no lado oposto de uma altura de cerca de 5,20m sobre um arruamento. Pelo que, em consequência direta e necessária daquela queda, que resultou em várias lesões traumáticas crânio- meníngeo-encefálicas e torácicas, o sinistrado faleceu naquela data, pelas 19h17, no Hospital de ....

C) O 2.º autor nasceu a .../2012, é filho do sinistrado e da autora, vivia na exclusiva dependência dos rendimentos auferidos por aqueles.

D) Aquando da ocorrência do acidente de trabalho, o sinistrado trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização da 2.ª ré, entidade empregadora, prestando serviços próprios da categoria profissional de servente da construção civil.

E) Tendo o acidente ocorrido no local e período normal de trabalho.

F) A 2.ª ré, entidade empregadora do sinistrado, na data em que ocorreu o acidente, tinha transferido a responsabilidade infortunística decorrente de acidentes de trabalho para a 1.ª ré, seguradora, pelo contrato de seguro a que corresponde a apólice n.o ...73.

G) Realizada a tentativa de conciliação, a 1.ª ré, seguradora, aceitou a existência do acidente e o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente; aceita a existência de uma apólice do ramo de acidentes de trabalho que se mostra transferida a responsabilidade infortunística relativamente ao sinistrado pela retribuição de € 635,00 X 14 meses/ano, acrescida de € 94,00 X 11 meses/ano de subsídio de alimentação. Porém, não aceita a responsabilidade pela reparação do mesmo uma vez que o acidente terá ocorrido por incumprimento de normas de higiene e segurança no trabalho por parte do próprio sinistrado, nos termos do n.o 7, al. a) e b) do art.º 14 da Lei 98/08 de 04/09, existindo assim fundamento para a descaraterização do acidente como acidente de trabalho e também sempre por incumprimento das normas de higiene e segurança no trabalho por parte da entidade empregadora, nos termos do art.º 18.º, n.o 1, da Lei 98/09 de 04/09, pelo que não se conciliou.

H) A 2.ª ré, entidade empregadora, aceita a existência do acidente, mas não a sua caraterização como acidente de trabalho. Aceita o nexo causal entre as lesões (morte) e o acidente, e aceita que à data do acidente a retribuição era de 635,00€ x 14 meses/ano, acrescida de 94,00€ x 11 meses/ano de subsídio de alimentação. Não aceita qualquer responsabilidade pela reparação do acidente uma vez que entende não ter existido qualquer violação das regras de segurança e higiene no trabalho da sua parte.

I) A autora vivia com o sinistrado desde 2011, em comunhão de cama, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem.

J) Era com os rendimentos auferidos pelo sinistrado e pela autora que ambos viviam, designadamente, faziam face às despesas de renda de casa, água, luz, gás, telefone e alimentação.

K) A vítima auferia e remuneração de 635,00€ x 14 meses, acrescida de 4,77€ x 22 x 11 meses/ano de subsídio de alimentação.

L) A obra em questão consistia na realização de trabalhos de reparação de um telhado de duas águas numa moradia de rés-do-chão e primeiro andar, tais trabalhos tiveram o seu início no dia 20/04/2020 e terminus no dia 24/04/2020.

M) Durante a execução dos trabalhos em questão foi instalado na fachada da moradia, com exceção da fachada onde se encontrava instalada uma varanda, uma estrutura de andaimes, por forma a permitir, não só o acesso dos trabalhadores ao telhado, mas também para permitir a realização dos trabalhos ao nível dos beirados do telhado, funcionando ainda como equipamento de proteção coletiva contra quedas em alturas.

N) No dia do acidente, o sinistrado, juntamente com dois colegas havia estado no telhado a terminar a reparação deste, sendo que, após a conclusão dos trabalhos de reparação do telhado, os trabalhadores, incluindo o sinistrado, desceram do telhado, através de uma escada metálica colocada na varanda existente na fachada da moradia e arrumaram a escada.

O) Como a obra em causa estava concluída, o trabalhador DD questionou os seus colegas, incluindo o sinistrado, se alguém precisava de aceder novamente ao telhado, ao que estes responderam negativamente.

P) Os trabalhadores, incluindo o sinistrado, começaram a desmontar os andaimes colocados na fachada da moradia.

Q) Após terem desmontado todos os andaimes, com exceção do andaime que se encontrava na fachada norte/noroeste da moradia, o sinistrado, sem nenhum motivo ou pré-aviso, e bem sabendo que os andaimes que serviam como guarda corpos já haviam sido desmontados, e sem comunicar a sua intenção aos seus colegas de trabalho, voltou a subir para o telhado, utilizando para o efeito a escada metálica que momentos antes haviam guardado, acedendo ao telhado através da varanda existente na moradia, que se encontrava na fachada oposta aquela onde se encontravam os seus colegas a proceder à desmontagem do último andaime.

R) Quando ocorreu o presente acidente, o sinistrado não se encontrava a utilizar linha de vida ou arnês.

S) O sinistrado tinha ingerido bebidas alcoólicas, apresentando uma TAS de, pelo menos 1,73 g/l, correspondente à TAS de 1,99 g/l registada, deduzido da margem de erro de 0,26 g/l.

T) O sinistrado tinha perfeito conhecimento que a sua capacidade de equilíbrio se encontrava afetada.

U) O telhado da moradia era inclinado.

V) O Sinistrado acedeu ao telhado e caminhou sobre o mesmo de forma cambaleante. (facto acrescentado pelo Tribunal da Relação e que agora se renumera).

Factos não provados

1) A vítima auferia 5,90x22x11 de subsídio de alimentação.

2) Os autores despenderam € 30,00 em deslocações ao juízo do Trabalho de ....

3) Os autores despenderam € 2 024,00 no funeral da vítima.

4) A obra teve lugar numa moradia de piso térreo.

5) Foram instalados guarda corpos na fachada da moradia.

6) A 2.ª ré disponibilizou ainda aos seus trabalhadores, incluindo ao sinistrado, equipamentos de proteção individual para prevenir quedas em altura, mais concretamente linha de vida e arnês.

7) Quando se encontrava no telhado, em virtude das suas capacidades físicas e motoras se encontrarem diminuídas em virtude da taxa de álcool que tinha, o sinistrado perdeu o equilíbrio e caiu do telhado.

8) Foi diretamente entregue pela entidade empregadora, linha de vida e arnês, encontrando-se tal equipamento disponível no local onde o sinistrado se encontrava a desempenhar a sua atividade profissional.

9) A entidade empregadora deu ao sinistrado formações sobre segurança e higiene no trabalho, incluindo formação para a realização de trabalhos em altura, tais como os que estavam a ser realizados quando ocorreu o acidente, no âmbito da qual foi explicado ao sinistrado a forma de utilizar o arnês e a linha de vida, as situações em que é obrigatória a sua utilização, bem como os riscos que a utilização de tal equipamento de segurança previne.

10) Quando ocorreu o acidente, o sinistrado tinha conhecimento que a utilização do arnês e da linha de vida era obrigatório e essencial para evitar o risco da queda em altura, que veio a acontecer.

11) A entidade empregadora havia dado instruções aos seus trabalhadores, incluindo o sinistrado, para que os trabalhos realizados no telhado fossem feitos com os andaimes devidamente instalados, ou utilizando o arnês e a linha de vida que lhes foi facultado.

12) A entidade empregadora deveria ter-se assegurado que nenhum trabalhador poderia aceder ao telhado após terem sido retiradas as medidas de proteção.

De Direito

A única questão que se coloca no presente recurso consiste em decidir se o acidente de trabalho de que o sinistrado foi vítima deve, ou não, considerar-se descaracterizado, mormente por força do disposto na alínea c) do n.o 1 do artigo 14.º da Lei n.o 98/2009 de 4 de setembro1. Ao decidir esta questão não deve perder-se de vista que o direito dos trabalhadores à tutela em caso de acidentes de trabalho é um direito constitucionalmente consagrado (artigo 59.º, n.o 1, alínea f) da Constituição da República Portuguesa) e que a afirmação da descaracterização implica que o sinistrado (ou seus beneficiários, como é o caso dos autos dado que o acidente ocasionou a morte do trabalhador) não terá qualquer direito à reparação do dano sofrido. A descaracterização deve, pois, considerar-se excecional, implicando uma apreciação rigorosa dos seus requisitos e assim se explicando as exigências de culpa grave por parte do sinistrado, por um lado, e a demonstração de que no caso concreto o comportamento do trabalhador foi a causa - sublinhe-se que nas hipóteses de negligência grosseira a lei exige mesmo que tenha sido a causa exclusiva (alínea b) do n.o 1 do artigo 14.º da Lei n.o 98/2009 de 4 de setembro) - do acidente. Por outras palavras, a incerteza sobre o que em concreto ocorreu não deve privar o trabalhador da proteção contra acidentes de trabalho, constitucionalmente consagrada.

Como se pode ler, entre muitos outros, no Acórdão do STJ de 15-11-2006, processo n.o 06S1829 (MARIA LAURA LEONARDO), "constitui entendimento jurisprudencial pacífico que é sobre a entidade responsável pela reparação que recai o ónus da prova dos factos descaracterizadores do acidente, tendo em conta que estes constituem factos impeditivos do direito invocado pelo sinistrado ou seus beneficiários". Assim cabe ao empregador ou ao segurador de acidentes de trabalho a prova dos factos descaracterizadores e designadamente da causalidade entre o comportamento do trabalhador e a ocorrência do acidente.

Nos casos em que se prova o sinistrado apresenta uma taxa de alcoolemia elevada é entendimento largamente dominante nos tribunais superiores portugueses há mais de três décadas2 que tal demonstração não é suficiente para que se deve considerar provado o nexo de causalidade.

Assim, como se pode ler no Acórdão do STJ de 26-06-2019, processo n.o 763/16.1T8AVR.P1.S1 (CHAMBEL MOURISCO) "[a]nalisando a matéria de facto provada, afigura-se-nos que, não obstante a prova de que o sinistrado apresentava uma TAS de 4,3g/l, certo é que não se provou que o acidente ocorreu por causa deste estado alcoólico, ou seja, não se provou o nexo de causalidade entre aquela taxa de álcool no sangue e a eclosão do acidente".

Num caso recente similar ao caso dos autos - um trabalhador da construção civil que caiu de um andaime à altura de cerca de 6-7 metros e que apresentava uma TAS de 1,8g/l - o Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 14-01-2022, processo n.o 919/19.5T8PTM.C1 (FELIZARDO PAIVA) afirmou que "não é de descartar que a queda tenha sido provocada não pela influência do álcool, mas sim devido exclusivamente ou não a outra causa", acrescentando que "[n]ão é possível afirmar, com toda a certeza, que não existiu outra qualquer causa para a ocorrência do acidente, visto que ninguém o presenciou" e que "[d]esconhece-se em absoluto de que modo e porque é que o sinistrado caiu, incluindo se houve ou não qualquer fator externo na origem dessa queda".

É precisamente o que sucede no caso dos autos já que o trabalhador, quando caiu, estava sozinho no telhado.

A circunstância de uma testemunha o ter visto a cambalear da última vez que subiu ao telhado - sublinhe-se que ninguém testemunhou que o visse a cambalear quando trabalhava pouco tempo antes - não se afigura relevante, já que se pode cambalear por muitos motivos, por exemplo, em razão do cansaço, de uma tontura ou indisposição súbita e momentânea. A verdade é que não se sabe o porquê do cambalear, como não se sabe nem nunca se saberá a causa da queda. Basta ter presente que mesmo uma pessoa sóbria pode cair de um telhado inclinado.

Assim, há que concluir que o acidente não deve ter-se por descaracterizado.

Decisão: Concede-se a revista, revogando-se o Acórdão recorrido e repristinando-se a sentença.

Custas do recurso pelo Réu Segurador.

Lisboa, 14 de julho de 2025

Júlio Gomes (Relator)

Domingos José de Morais

Paula Leal de Carvalho

_____________________________________________

1. A violação das regras de segurança pelo trabalhador, prevista na alínea a) do n.o 1 do artigo 14.º da LAT deve considerar-se afastada tanto mais que não se provou que tivesse sido dada ao trabalhador formação na matéria da segurança no trabalho (facto 9 dos factos não provados), nem que tenha disponibilizado equipamentos de proteção individual (facto 2) ou que o empregador tenha dado instruções no sentido da sua utilização (facto 11 do elenco dos factos não provados).??

2. Veja-se, por exemplo, o Acórdão do STJ de 26-05-94, recurso n.o 3950 (DIAS SIMÃO) in CJSTJ, ano II, tomo 2, pp. 271-273??

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