I. Relatório
1. A acção
AA, BB, CC e DD vieram, por apenso à execução para pagamento de quanta certa intentada por Alexandre Barata & Rolo, Lda., deduziram oposição por embargos de executado.
Alegaram os embargantes AA e BB, que na qualidade de fiadores do "acordo de reconhecimento de dívida e obrigação de pagamento" junto como título executivo deveriam ter sido notificados para poderem pagar a dívida, sob pena da perda do benefício do prazo que detêm antes da resolução contratual e só souberam da pretensão da exequente de resolução/vencimento de todas as prestações, com a citação para a acção executiva. Mais alegam que as prestações que lhes são diretamente imputáveis- alíneas a) e b) da cláusula 3.ª do título executivo- sendo que a primeira foi paga e a segunda só se venceria em 30 de junho de 2022, e acção executiva entrado em 03 de março de 2022.
A Exequente contestou, alegando com utilidade, que os fiadores foram informados por telefone, tendo vista ao pagamento da dívida; mais sustentam que os embargantes assumiram pessoal e diretamente o pagamento da dívida nos mesmos termos que os restantes devedores (com a inerente perda do benefício do prazo), tendo sido estipulado o vencimento imediato da dívida, em caso de não pagamento de uma prestação.
Prosseguiu a instância e realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedentes os embargos, reduzindo a quantia exequenda quanto aos executados AA e BB para o montante de € 125.801,45, acrescido dos juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal, a contar desde a data da sua citação até efetivo e integral pagamento.
2. A apelação
Inconformados, os embargantes interpuseram recurso, advogando a revogação da sentença e a procedência integral da sua oposição, por não terem sido interpelados extrajudicialmente para o pagamento da quantia dada à execução.
O Tribunal da Relação de Coimbra julgou improcedente a apelação em acórdão lavrado com voto de vencido.
3. A revista
Inconformados, os embargantes pedem revista, reiterando a argumentação expendida e pugnam pela revogação do acórdão no sentido da extinção da execução.
As alegações culminam nas conclusões seguintes:
« A)Reconhece a douta sentença que "...considera o Tribunal que, face à inexistência de qualquer prova no sentido de que os fiadores tenham sido previamente interpelado..." dando mesmo este facto como não provado, que "No que diz respeito ao facto não provado vertido na alínea (A) considera o Tribunal que a Exequente não fez qualquer prova de ter interpelado os fiadores AA, BB para pagamento das quantias em dívida, previamente à instauração da acção executiva de que os presentes constituem apenso. Com efeito, não foi produzida prova testemunhal nesse sentido, nem junta qualquer carta de interpelação. B)Porém se os recorrentes ficaram vinculados por força da cláusula Sétima do "acordo de reconhecimento de divida e obrigação de pagamento", como garantes/fiadores da referida dívida, de acordo com a douta sentença diz-se que "Na cláusula referente à fiança prestada (cláusula 7.ª) em nenhuma parte é referido que os fiadores renunciam ao benefício do prazo, considerando o Tribunal que, contrariamente ao alegado pela Embargada em sede de contestação, do clausulado contratual não se retira que os fiadores tenham renunciado ao benefício do prazo. Acresce que, resultou como não provado que «Que, previamente à instauração da presente acção executiva, os Embargantes AA e BB tenham sido interpelados pela Exequente para procederem ao pagamento das quantias em dívida» (cf. facto não provado vertido na alínea A).".
C) Logo deveriam os fiadores ter sido notificados para poderem pagar a dívida, antes da resolução contratual, sob pena da perda do benefício do prazo que detinham, o que não aconteceu, pois, os fiadores só souberam da pretensão da resolução/vencimento de todas as prestações, com a presente execução.
D) Neste mesmo sentido o douto Ac. da Relação de Coimbra, no proc. 1049/11.3T8PMS.C1 de 04/04/2017, que diz:
1 - A perda do benefício do prazo de pagamento de obrigações a prestações emergente do não pagamento de uma delas não vale quanto ao fiador (art.º 782º do C. Civil). 3- A expressa renúncia ao benefício de excussão por parte do fiador não determina por si só o afastamento do regime previsto no dito art.º 782º do C. Civil, não tendo o alcance nem se traduzindo na renúncia ao benefício do prazo. IV - Em todo o caso, o vencimento nunca é automático, carecendo a exigência de pagamento de todas as prestações vencidas, de interpelação.
E) E ainda os doutos Acs do S.T.J., de 11/05/2022, recente, no processo 151119.0T8STB-A-E1-SI, da 1ª secção, sendo o sublinhado nosso, onde se diz:
IV - A perda de benefício do prazo pelo devedor a favor do credor não se estende, porém, ao seu fiador, e bem como aos seus demais coobrigados e a terceiros (art.º 782º, do C. Civil). V - Só assim não sucederá, num regime que igualmente se apresenta com natureza supletiva, se as partes outorgantes, à luz do princípio liberdade contratual (ínsito no art.º 405º, no. 1, do CC), tiverem expressamente convencionado o contrário.VI - Não o tendo feito, o credor só poderá exigir do fiador do devedor principal (ou dos demais coobrigados deste) o imediato pagamento da totalidade da dívida antecipada se previamente o tiver interpelado, com essa cominação/advertência, para pôr termo à mora, pagando as quantias em dívida vencidas pelo decurso do prazo contratual para elas estipulado. VII - A citação do fiador na ação executiva, que contra si instaurou o credor com vista a obter dele o pagamento da totalidade de tal crédito.
que ali se apresenta como litigioso), não tem a virtualidade, por não ser o meio idóneo para o efeito, de substituir a referida interpelação (prévia).
E no mesmo sentido, o douto Ac. do S.T.J. de 14-01-2021, no processo 1366/18.1T8AGD-A. P1-S1, da 7ª secção cível, (..).
F) Desta forma deveriam os fiadores/recorrentes, antes da acção executiva, ser citados para pagar as prestações em atraso e dar assim cumprimento ao plano de pagamentos acordados, o que não aconteceu como ficou provado, e nunca a acção executiva poderia correr contra si, como acontece.
G) Além de que as prestações imputadas aos fiadores, eram duas, nos termos da cláusula Terceira, alínea a) e b), a primeira vencida e paga e a segunda que só se venceria em 30 de Junho de 2022, logo estavam os fiadores cumpridores da sua parte, nessa data, devendo ter sido dada a possibilidade aos fiadores de cumprir, até porque a interpelação não dispensa a interpelação autónoma do fiador, já que de acordo com o art.º 781 do CC, só resulta a mera exigibilidade das prestações e nunca o vencimento automático, pois esta só se vencem apenas depois da interpelação, como bem estabelece o douto Ac. do T.R.G., de 03-10-2019, no processo 3646/18.7T8GMR-C.G1. Mas o Exmo. Sr. Juiz Desembargador não perfilha essa interpretação, na medida em que entende que "...no contrato figura uma clara distinção entre "devedores" e "quartos outorgantes", sendo que através da cláusula 5ª apenas se obrigam/responsabilizam literalmente os "devedores", pelo que, estender a extinção do plano prestacional, sem necessidade de aviso prévio, aos "quartos outorgantes" (estes é que são os "fiadores" na circunstância) não me parece ajustado", considerando que a perda do benefício do prazo por parte dos fiadores só os iria vincular ficasse estipulado de forma expressa, o que não aconteceu.
H) E em certa medida, com o seu voto de vencido, o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, EE, vem apoiar as teses dos recorrentes, isto porque o que parece resultar das cláusulas 5ª e 7ª do acordo que os fiadores também subscreveram, onde se consignava que a falta de pagamento de qualquer das prestações levaria à extinção do plano prestacional, sem necessidade de aviso prévio.
I) Mas o Exmo. Sr. Juiz Desembargador não perfilha essa interpretação, na medida em que entende que "...no contrato figura uma clara distinção entre "devedores" e "quartos outorgantes", sendo que através da cláusula 5ª apenas se obrigam/responsabilizam literalmente os "devedores", pelo que, estender a extinção do plano prestacional, sem necessidade de aviso prévio, aos "quartos outorgantes" (estes é que são os "fiadores" na circunstância) não me parece ajustado", considerando que a perda do benefício do prazo por parte dos fiadores só os iria vincular ficasse estipulado de forma expressa, o que não aconteceu.
J) Assim esta perda do prazo não se pode estender de forma automática aos "fiadores", quer por força do estatuído no art.º 782º do C. Civil, quer porque nada foi expressamente convencionado/acordado nesse sentido e por outro lado para que houvesse lugar à exigência do pagamento aos "fiadores", era necessário que a credora os tivesse previamente interpelado para o efeito, a fim de impedirem o vencimento antecipado de todas as prestações e ao consequente pagamento de todas elas.
L)E refere o Exmo. Sr. Desembargador no voto de vencido: "Sustenta-se no acórdão que é relevante/suficiente para esse efeito a citação dos "fiadores" para a execução. Ora, nesse particular, em dissentimento com esse entendimento, entendo que a citação judicial dos "fiadores", levada a efeito pela credora/ora exequente na ação executiva que contra aqueles instaurou, não tem a virtualidade, por não ser o meio idóneo para o efeito, de substituir a interpelação (prévia) que, no caso, se impunha que aquela levasse a efeito junto dos últimos, no sentido de estes perderem o benefício de prazo de que gozam (à luz do citado art.º 782º do C. Civil - neste sentido, vide, inter alia, o acórdão do STJ de 29-11-2016, proferido no proc. no 100/07.6TCSNT-A.L1.S1."
M) Entendimento que perfilhamos, pois ficou provado que a credora não interpelou previamente os "fiadores", e não é pela acção executiva que essa prévia interpelação pode ser sanada, como supra já invocado e com respectivos acórdãos de suporte, pelo que os "fiadores" não deveriam ser parte na execução pois que a interpelação deveria ter sido feita antes da propositura dessa execução.
N) Pelo exposto fica prejudicado a responsabilidade dos recorrentes/fiadores pelo pagamento do valor peticionado pelos recorridos, já que a acolher-se a posição do douto tribunal a quo e mantida pela douta Relação, sempre ficariam prejudicados os direitos dos fiadores.»
Não foram juntas contra-alegações.
II. Objecto do recurso
Atestados os requisitos gerais de recorribilidade, o acórdão da Relação que confirmou a sentença com voto de vencido e invocado o fundamento de erro de interpretação e aplicação de direito substantivo, admite revista -cfr. artigos 854º, ex vi 671º, nº1e 674º, nº1, a) do CPC.
Analisadas as conclusões dos recorrentes, em interface com acórdão impugnado, as questões a apreciar são as seguintes:
• Os fiadores/recorrentes renunciaram ao benefício do prazo do cumprimento;
• A sua citação na execução cumpre a função da interpelação admonitória para o pagamento da totalidade da obrigação.
III. Fundamentação
A. Factos
Vem provado das instâncias:
1. Em 03 de Março de 2022 a Exequente Alexandre Barata & Rolo, Lda. instaurou contra V..., Lda, CC, DD, AA e BB, execução ordinária para o pagamento de quantia certa, ascendendo o montante da quantia exequenda peticionada a € 125.801,45.
2. No Requerimento Executivo apresentado, a Exequente invocou, nomeadamente, o seguinte:
«1.º A aqui Exequente arrendou o estabelecimento comercial de restauração "A....." à ora primeira executada;
2.º Sucede que não foram pagas as rendas do supra aludido estabelecimento, pelo que o aqui Exequente intentou as competentes acções executivas para pagamento de quantia certa, que correram os seus termos no juízo de execução de ..., sob os números 880/19.6... e 1850/21.0...;
3.º Em consequência das diligências executivas promovidas nos processos supra, os ora Executados, em 30 de Novembro de 2021, celebraram uma confissão de dívida e acordo de pagamento prestacional, através do qual ficaram obrigados a pagar ao aqui Exequente o montante global de € 126.551,45 (cento e vinte e seis mil quinhentos e cinquenta e um euros e quarenta e cinco cêntimos) (...) Sucede que, até à presente data, os Executados não procederam ao pagamento dos valores supra indicados, encontrando-se vencidas e não pagas as prestações (de € 750,00 cada) referentes aos meses de Janeiro de 2022 e Fevereiro de 2022(...) Ora, mais prevê a cláusula quinta do acordo firmado que: "A falta de pagamento de qualquer uma das prestações nos prazos supra fixados, implicará o imediato vencimento da dívida pendente e ainda o pagamento de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de penalidade, sendo facultado à credora o direito de reclamar judicialmente juntos dos devedores o saldo a seu favor, sem necessidade de aviso ou diligência prévia, constituindo assim este documento, devidamente autenticado, título executivo." (...) Destarte, pretende a Exequente haver dos Executados o capital já vencido, que ainda permanece em dívida, no montante de € 120.801,45 (cento e vinte mil oitocentos e um euros e quarenta e cinco cêntimos) (...) Ao capital em dívida acresce ainda a cláusula penal estipulada no contrato, no montante global de € 5.000.00 (cinco mil euros)(...)Às quantias supra descritas acrescem ainda os juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento da quantia em dívida, bem como as demais despesas de cobrança, efetuadas pela Exequente».
3. Apresentou como título executivo um documento intitulado de "Acordo de Reconhecimento de Dívida e Obrigação de Pagamento", datado de 30 de novembro de 2021, autenticado por advogado, no qual constam como outorgantes: - V..., Lda, representada pelo então sócio-gerente, CC como «primeira outorgante devedora»; - DD, como «segundos outorgantes devedores»; - Alexandre Barata e Rolo, Lda. como «terceira outorgante credora»; - AA e BB como «quartos outorgantes fiadores».
4. Nos termos do referido "Acordo de Reconhecimento de Dívida e Obrigação de Pagamento" acordaram as partes o seguinte:
Primeira
A primeira outorgante sociedade V..., Lda e os segundos outorgantes CC e DD reconhecem a dívida comercial contraída para com a sociedade ALEXANDRE BARATA & ROLO, LDA., no valor actual de 126.551,45 (cento e vinte e seis mil quinhentos e cinquenta e um euros e quarenta e cinco cêntimos).
Segunda
A quantia mencionada na cláusula anterior corresponde ao capital peticionado no âmbito da acção executiva que corre termos no Juízo de Execução de ..., Juiz ..., sob n.o 880/19.6..., no valor de 74.731,45 €, incluindo juros e honorários do agente de execução e da acção de processo comum que corre termos Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., sob a n.o 1850/21.0..., no valor actual de 51.820 € e que engloba as rendas vencidas desde Agosto de 2020 até à data da entrega do estabelecimento de restauração 'A....." e indemnização diária, devida pelo atraso na entrega do estabelecimento, ambas instauradas pela terceira outorgante credora contra a primeira e os segundos outorgantes devedores para cobrança da referida dívida.
Terceira
Á referida quantia de 126.551,45 (cento e vinte e seis mil quinhentos e cinquenta e um euros e quarenta e cinco cêntimos) será paga pelos devedores à credora da seguinte forma:
a) 5.000 € (cinco mil euros) até ao próximo dia 31 de Dezembro de 2021, através de cheque sacado sobre conta bancária da qual sejam titulares os quatro outorgantes fiadores;
b) 10.000 € (dez mil euros) até ao próximo dia 30 de junho de 2022, através de cheque sacado sobre conta bancária da qual sejam titulares os quatro outorgantes fiadores e
c) o remanescente valor de 111.551,45 em 149 (cento e quarenta e novo) prestações§ sucessivas, sendo as primeiras 148 (cento e quarenta e oito) iguais, no valor de 750 € (setecentos e cinquenta euros) cada uma e a 149.ª e última prestação no valor de 551,45 € (quinhentos e cinquenta e um euros e quarenta e cinco cêntimos), vencendo-se a primeira no próximo dia 31/12/2021 e as restantes no último dia útil de cada um dos meses subsequentes.
Quarta
As prestações mencionadas na cláusula anterior serão liquidadas por transferência bancária para a conta com o IBAN PT........ 83, de que a sociedade credora é titular no Bankinter.
Quinta
A falta de pagamento de qualquer uma das prestações nos prazos supra fixados, implicará o imediato vencimento da dívida pendente e ainda o pagamento de 5.000 € (cinco mil euros), a título de penalidade, sendo facultado à credora a direito de reclamar Judicialmente junto dos devedores o saldo a seu favor sem necessidade de aviso ou diligência prévia, constituindo assim este documento, devidamente autenticado, título executivo.
Sexta
Em caso de não cumprimento da obrigação de pagamento assumida pelo presente acordo, serão por conta dos devedores o pagamento das despesas e custas com a reclamação judicial e extrajudicial da dívida.
Sétima
Os quartos outorgantes assumem aqui pessoalmente directamente o pagamento da divida antes mencionada, cumulativamente com os devedores brigando-se ao pagamento da dívida agora assumida como própria e com carácter solidário com respeito à citada devedora originária, mas com expressa renúncia a qualquer benefício de divisão ou excussão prévia.
Oitava
As partes acordam submeter qualquer litígio que não consigam dirimir de forma amigável ao foro da Comarca de Coimbra.
Coimbra, 30 de Novembro de 2021
5. Devido à situação pandémica, o estabelecimento comercial de restauração "V..., Lda" esteve vários meses encerrado, não tendo os devedores CC e DD auferido rendimentos.
6. A sociedade "V..., Lda" foi declarada insolvente em 27 de novembro de 2020.
7. O Embargante CC é economista de formação.
8. Os devedores CC e DD não liquidaram as prestações acordadas referentes aos meses de janeiro e fevereiro de 2022, o que determinou o vencimento de todas as demais.
9. AA e BB foram citados na acção executiva principal no dia 08 de abril de 2022.
E, não provado:
A) Que, previamente à instauração da presente acção executiva, os Embargantes AA e BB tenham sido interpelados pela Exequente para procederem ao pagamento das quantias em dívida.
B. O Direito
1. Sinopse
Os recorrentes deduziram oposição por embargos à execução para pagamento da quantia de €125.80,45, pugnando pela sua extinção.
Entendem que, do acordo de pagamento da dívida em prestações não resulta que renunciaram enquanto fiadores ao benefício do prazo, pelo que não tendo sido previamente interpelados, não lhes é exigível o pagamento da quantia exequenda.
Sobre a primeira questão, o Tribunal de primeiro grau satisfez a posição dos opoentes; já no que respeita à matéria jusante, concluiu pela relevância da citação dos executados que substituiu a interpelação admonitória quanto à obrigação do pagamento do valor do capital em dívida.
O Tribunal da Relação divergiu quanto ao sentido do acordo, ajuizando que os embargantes fiadores renunciaram ao benefício do prazo; e mais concluiu, que neste caso, a citação para a execução revelou-se eficaz na função de comunicar a extinção do plano de pagamento em prestações e da exigibilidade imediata do total da dívida, confirmando o julgado.1
Na revista, os embargantes acolheram-se, no essencial, no teor do voto de vencido do Senhor Desembargador, para sustentarem que não é clara no acordo a sua renúncia ao benefício do prazo e, a citação na execução não equivale à necessária interpelação prévia quanto ao vencimento do total da dívida.
2. Breve enquadramento normativo
Está em causa saber, se é necessária a interpelação prévia e admonitória dos embargantes fiadores no título executivo para a exigibilidade do pagamento da quantia exequenda, resultante do vencimento antecipado de todas as prestações, por incumprimento dos devedores principais, e a relevância e eficácia da sua citação para a execução no domínio da exigibilidade da obrigação exequenda.
A regra segundo a qual o credor não pode exigir o cumprimento de uma obrigação antes do vencimento/decurso do prazo (para ele previsto) está subjacente ao estatuído no artigo 779º do Código Civil, i.e, o prazo é estabelecido em benefício do devedor.
Regra que contempla algumas exceções, como a respeitante à dívida liquidável em prestações a que alude o artigo 781.º do Código Civil: "Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas".
E quanto ao fiador?
Em situação de perda do benefício do prazo relativamente ao devedor, estabelece o artigo 782º do Código Civil - que a perda não engloba os "coobrigados do devedor nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia".
Partindo da definição legal da fiança - artigo 627º do Código Civil - o fiador vincula-se pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do crédito sobre o devedor.2
Ensina Antunes Varela que o fiador é um verdadeiro devedor, mas a obrigação que assume é acessória da que recai sobre o obrigado, e que tal obrigação, é a do devedor (principal).3
Tal característica da subsidiariedade traduz um benefício consagrado exclusivamente a favor do fiador, que se concretiza no benefício de excussão nos termos estabelecidos no artigo 638º do Código Civil.4
2.1. Dada a natureza supletiva das regras estabelecidas nos artigos 779º e 782º do Código Civil, as partes podem convencionar em sentido diverso, mercê da autonomia da vontade e do princípio da liberdade contratual (ut artigo 405ºCC).
Neste âmbito, constituiu orientação dominante na jurisprudência que a perda do benefício do prazo pelo devedor não se estende ao fiador - devedor solidário - salvo expressa estipulação contratual em sentido contrário, ou se verifique, também quanto ao fiador, causa determinante dessa perda.5
As partes podem então estabelecer, que o(s) fiador(es) renuncia(m) ao benefício do prazo de cumprimento, assumindo a obrigação de principal pagador, de modo que o credor possa exigir-lhe(s) o pagamento coativo da totalidade da dívida.
Em nota interlocutória ressalta ainda a distinção conceptual dos institutos jurídicos do vencimento da obrigação e da exigibilidade da obrigação.
A dívida está vencida na situação de necessidade de cumprimento ou pagamento por parte do devedor; a dívida vencida será também exigível quando o credor pode exigir o respetivo cumprimento, por ter já interpelado o devedor.
Ilustra o sobredito o Acórdão do STJ de 30.06.2020:
«Os conceitos de exigibilidade e de vencimento são distintos, mas nem sempre são bem usados na legislação, doutrina e jurisprudência.A exigibilidade é a situação em que o credor pode exigir o cumprimento e o vencimento é a situação em que o devedor está constituído na necessidade de cumprir.Formulando a questão sob a perspectiva do tempo do cumprimento, é possível dizer que é frequente os dois momentos não coincidirem (a obrigação é exigível, mas só se vence quando há interpelação do devedor)".6
Na doutrina.
Apelando à definição de BATISTA MACHADO - "a interpelação deve ser integrada por um conteúdo preciso, a saber: (i) a intimação para o cumprimento, (ii) a fixação de termo peremptório para o cumprimento e (iii) a admonição ou a comunicação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá definitivamente não cumprida se não se verificar."7
Segundo M. GRAÇA TRIGO e M. NUNES MARTINS - «a interpelação consubstancia-se no acto por meio do qual o credor exige o cumprimento, qualificando-se como um simples acto jurídico de natureza não negocial, sendo aplicáveis, neste domínio as disposições relativas aos negócios jurídicos, conforme dispõe o artigo 295.º»8
2.2. E, no que se prende com a concretização dos efeitos do vencimento antecipado e exigibilidade coactiva da obrigação ao fiador?
Perspetivam-se duas interpretações.
Uma delas, suportada na exigência de uma interpelação prévia do fiador; outra, quando se trate de obrigações a termo certo, defende apenas o cumprimento do dever de informar o fiador do vencimento antecipado, ancorado no princípio da boa-fé e dos deveres acessórios de conduta que recaem sobre o credor.
Na esteira da jurisprudência consolidada neste Supremo Tribunal, considera-se que:
i. a perda do benefício do prazo por parte do devedor principal em razão do seu incumprimento não se estende automaticamente ao fiador, salvo convenção em sentido contrário;
ii. pretendendo o credor exigir o pagamento imediato de todas as prestações futuras em dívida, como na situação da obrigação creditícia fracionada no tempo, é necessária à sua interpelação admonitória prévia;
iii. devido à natureza acessória da fiança, e às regras da boa-fé;
iv. o efeito do vencimento antecipado de todas prestações futuras corresponde a um direito potestativo concedido ao credor que o exercerá consoante os seus interesses. 9
Na doutrina, entre outros, A PRATA, in CC Anotado, Vol. I, Almedina, 2017, pág. 980; J. H. DEGADO DE CARVALHO, in Temas de Processo Civil, A prática da teoria, Quid juris? Lisboa, 2019, pág. 166; e também J. COSTA GOMES in Assunção Fidejussória de Dívida, Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, 2000, pp. 944/951.
2.3. No desenvolvimento do tema haverá ainda que definir, se na ausência da interpelação prévia do fiador, a citação na execução para contestar ou pagar a totalidade da dívida resultante da antecipação de vencimento, poderá suprir a falta de tal interpelação.
Neste segmento, a jurisprudência actual no Supremo Tribunal vem reconhecendo a "relevância pragmática" da citação dos fiadores para a execução, daí decorrendo a imediata exigibilidade de todas as prestações em dívida, exceto no que respeita aos juros de mora, devidos apenas desde a citação.
Em ilustração, afirma-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2021:10
" (...) Chegados a este ponto, é nele que se coloca a questão final de determinar se a falta de interpelação do fiador, necessária por este não ter renunciado ao benefício do prazo, não podendo ser substituída pelos efeitos da citação na execução, impõe a extinção da execução ou se permite relevar aquela citação, vinculando o fiador ao pagamento do capital das prestações em dívida, vencidas e vincendas, apenas com a salvaguarda de a exigibilidade desse montante, datado na citação, tornar devidos os juros de mora a partir desta. Ou, num outro entendimento já sufragado também pela jurisprudência, apenas as vencidas à data da execução, e acrescida dos juros pedidos desde a data da citação.
No plano da definição dos princípios, afirmámos a necessidade de interpelação do fiador por parte do credor e que com ela não se confunde a citação que lhe haja sido realizada na execução para exigir o pagamento da totalidade da dívida, porque a citação não permitiria ao fiador a oportunidade de pagar as prestações vencidas, evitando a exigibilidade das vincendas. No entanto, por razões de relevância pragmática, várias são as decisões que, sensíveis a que a citação é em qualquer caso uma comunicação, admitem que esta, não tendo o valor nem a natureza da interpelação que era exigível, possa ter a utilidade para através dela o credor exigir ao fiador a totalidade da dívida (prestações vencidas e vincendas) excepto no que diz respeito aos juros de mora que se contariam desde a citação apenas."
3. O caso em juízo
Os factos provados relevantes:
• A exequente celebrou com os executados o "Acordo de Reconhecimento de Dívida e Obrigação de Pagamento" contendo o plano do respetivo pagamento em prestações, cujos termos estão transcritos no ponto 3 dos factos provados (cfr. cláusulas Quinta e Sétima);
• Os recorrentes (quartos outorgantes) tiveram intervenção na qualidade de fiadores.
• Os primeiros e segundos outorgantes não pagaram as prestações do plano de pagamento relativas aos meses de janeiro e Fevereiro de 2022 e a execução entrou em juízo em 2 de Março de 2022.
Nas decisões ds instâncias temos como divergente a interpretação da vontade contratual das partes vertida no acordo /título executivo acerca da renúncia ao benefício do prazo pelos fiadores; convergiram ainda assim na eficácia da sua citação para a exigibilidade da obrigação exequenda.
3.1. Sendo assim patente que não ocorreu a interpelação prévia dos recorrentes, que dizer?
Sobre a primeira questão.
De acordo com o artigo 236º n.o 1 do Código Civil "A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele".
Nada vindo provado que permita encontrar a vontade real comum dos contraentes, vale a teoria da impressão do declaratário consagrada na interpretação das diversas cláusulas e da globalidade do contrato. 11
No domínio das declarações negociais que envolvem a prestação de fiança, sublinha A. MENEZES CORDEIRO que a dúvida sobre o sentido da declaração deve ser resolvida interpretativamente pela solução mais favorável para o fiador, como seja a que resulte em menor latitude da fiança, sendo ao credor que cabe o ónus de consignar que tudo fique a coberto e esclarecido.12
J. COSTA GOMES destaca, que sendo a fiança um negócio de risco, a especificidade do negócio jurídico deve ter consequências específicas a nível da interpretação da declaração do fiador, ditando a necessidade de a declaração fidejussória ser interpretada de forma estrita, segundo o critério do carácter menos gravoso para o declarante, de acordo com o princípio in dubio pro fideiussore. 13
«(...) Na dúvida sobre o sentido da declaração, não será directamente relevante o critério subsidiário do art.º 237.º CCiv - "dicotomizado" entre os negócios gratuitos e os onerosos - mas, antes, o critério do carácter menos gravoso para o declarante. Assim resulta, natural e razoavelmente, do facto de a fiança ser um negócio de risco, donde decorre que deve ser o credor, beneficiário da garantia, a curar no sentido de a declaração "cobrir", inequivocamente, todas as situações que pretende ver resguardadas." (...).»14
À luz do que se expôs, a análise crítica do acordo documentado (reproduzido no ponto 3 dos factos provados), em conjugação com a restante facticidade enunciada, mostra a razoabilidade da exegese que o acórdão recorrido prosseguiu - os recorrentes/ fiadores expressaram a vontade de renunciarem ao benefício do prazo de cumprimento, assumindo a obrigação como "devedores principais/ em cumulação", com dispensa de comunicação prévia.
A vinculação à renúncia do prazo de cumprimento pelos fiadores revela - se de forma clara na letra e economia do acordo, sob a percepção de um declaratário normal e consonante com as exigências da declaração fidejussória.
Como explicitou o acórdão recorrido:
«Em face de todo o clausulado, em especialdas cláusulas 5ª e 7ª do acordo, os fiadores, da mesma forma que os devedores principais, também concordaram desde logo que a falta de pagamento de qualquer das prestações, pelos devedores principais, importaria a extinção do plano prestacional, sem necessidade de aviso prévio. Os fiadores obrigaram-se ao pagamento da dívida, como própria, diretamente, aceitando a desnecessidade de aviso prévio, aceitando assim que, em caso de incumprimento do devedor principal, deixava de se poder recorrer ao esquema prestacional. Perante o acordo, os fiadores deixaram de ter a faculdade de, em caso de incumprimento do devedor principal, poder substituir-se a ele no cumprimento do contrato seguindo o esquema prestacional.»
A nosso ver, s. d.r, parece frágil e desprovido do alcance atribuído, o contra-argumento dos recorrentes, suportado no mero elemento literal do acordo - designação de "outorgantes" e "devedores" - que consta das cláusulas 5ª e 7ª; pois, ambos os termos se aprestam e são comummente usados em designação de todos os intervenientes do lado passivo na tipologia do acordo em apreço.
Conclusão reforçada, tendo ficado ainda contemplada no acordo a renúncia dos fiadores ao benefício da excussão do património dos devedores principais, comummente associadas e presentes neste tipo contratual.15
Donde, entendendo-se, como se disse, que no caso em juízo os fiadores/recorrentes assumiram a obrigação como devedores, renunciando ao benefício do prazo e dispensa de interpelação, verificada a falta de pagamento de uma das prestações, nada obsta à realização coactiva da prestação, e a embargada -exequente pode exigir-lhes na execução o pagamento imediato da quantia correspondente ao montante total das prestações escalonadas no tempo, mas que, por via desse incumprimento, se venceram antecipadamente, à semelhança do que dispõe o artigo 781º do Código Civil.
3.2. De qualquer modo, se porventura se entender pouco clara ou equívoca a convenção quanto à renúncia do prazo de cumprimento e dispensa de interpelação prévia pelos recorrentes, subsiste a relevância pragmática dos efeitos da sua citação na execução -a exigibilidade do montante da obrigação vencida, com contabilização de juros moratórios, a partir da citação, conforme fixado pelas instâncias.
Socorrendo-nos da síntese preclara do Acórdão do Supremo Tribunal de 14.10.2021:
" (...)IV - A ausência de comunicação/interpelação aos fiadores não afasta, porém, a relevância da posterior citação destes para a execução, considerando-se realizada a necessária interpelação admonitória dos fiadores com essa citação, dessa forma afastando a regra do art. 782.º e fazendo funcionar o regime do art. 781.º, com exigibilidade, a partir da citação, de todas as prestações em dívida e devidas até ao final dos prazos dos contratos, contando-se os juros moratórios, apenas, a partir daí." 16
Relevância da citação na execução para tal efeito, que corresponde a uma abordagem pragmática e equilibrada no moderno tráfego jurídico, que também no caso concreto parece ajustável, no quadro da vinculação assumida no acordo pelos recorrentes fiadores como devedores e perda do benefício da excussão prévia.
Soçobram as conclusões dos recorrentes.