Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer Cfr. artigo 412º, no 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V..
2. Factos Provados
Segue-se a enumeração dos factos provados e não provados, constantes da sentença recorrida:
«Feito o julgamento e com relevância para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade (considerando agora apenas a factualidade inerente aos crimes imputados ao arguido A. C., face à extinção do procedimento criminal quanto aos arguidos B. G. e P. P.):
1.No dia 01.06.2015, cerca das 13h, na Avenida ..., junto à entrada do prédio com o n..., em ..., num contexto de discussão, arguido A. C. depois de ter subido alguns degraus das escadas de entrada do prédio, saltou e desferiu um pontapé na face de B. G., projectando-o para o chão.
2.Nas mesmas circunstâncias de tempo e local, o arguido A. C. deu um pontapé na zona do tórax de A. G., tendo esta colocado as mãos sobre o peito para se proteger, atingindo-a, então, nos membros superiores.
3.Em consequência directa e necessária da actuação do arguido A. C., B. G. sofreu dores, equimose na face, escoriações na região lombar, edema e equimose no membro inferior esquerdo, lesões essas que lhe determinaram 6 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
4.Em consequência directa e necessária da actuação do arguido A. C., A. G. sofreu dores, e equimoses nos membros superiores, lesões essas que lhe determinaram 5 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
5. Ao agir do modo descrito, teve o arguido A. C. o propósito conseguido de molestar o corpo de B. G. e de A. G., causando-lhes dores e lesões da natureza das verificadas.
6. O arguido agiu livre, deliberada, e conscientemente, bem sabendo que a respectivas condutas era proibidas e penalmente punida.
7.O arguido não tem antecedentes criminais.
8.Reside e trabalha em França.
9.Em consequência da conduta do arguido, os demandantes sentiram, para além de dores, nervosismo e humilhação e sofreram perturbações no sono.
Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
1. Que os ferimentos causados no demandante B. G. só desapareceram ao fim de uma semana.
2. Que ainda hoje quando se fala no assunto os demandantes ficam emocionalmente perturbados.
3. Que as perturbações no sono duraram mais de uma semana, adormecendo os demandantes à custa de calmantes e sempre por curtos períodos de tempo, o que fazia com que andassem muito cansados e nervosos sem paciência para nada e ninguém, evitando o contacto e convívio social.
4. Que os demandantes se tenham sentido constrangidos e ainda hoje se sintam, perante as pessoas que presenciaram os factos.»
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
O arguido/recorrente A. C. começa por arguir a ocorrência de nulidades insanáveis, previstas no artigo 119.º, al. c) do Código de Processo Penal, que se reportam à realização do julgamento na sua ausência e omissão de notificação da data designada para a leitura da sentença.
Vejamos.
Em matéria de audiência de julgamento, ressalta das normas processuais penais a regra geral da obrigatoriedade da presença do arguido, nos termos do artigo 332.º, n.o 1 do Código de Processo Penal. Só podendo o julgamento decorrer na sua ausência nos casos previsto nos artigos 333.º, n.os 1 e 2 e 334.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma.
Porém, mesmo nestes casos excecionais, a possibilidade de prosseguimento da audiência na ausência do arguido está sempre dependente da sua prévia e regular notificação para comparecer e da advertência da possibilidade de a audiência se realizar na sua ausência, mesmo que não compareça.
O que decorre, desde logo, do direito que o arguido tem de estar presente em todos os atos processuais que lhe digam respeito e de prestar declarações até ao encerramento da audiência, conforme estabelecem os artigos 61.º, n.o 1, alínea a) e 333.º, n.o 2, do Código de Processo Penal, respetivamente.
Note-se também, a propósito, que mesmo iniciando-se o julgamento na ausência do arguido, na data para que foi notificado, caso continue numa nova data, também dela tem o arguido de estar ou ser notificado, sem o que se impediria, na prática, a materialização daqueles direitos Neste sentido, cfr, por todos, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2009.03.03, CJ, 2009, II, 135.
.
Cominando a lei com nulidade insanável - no artigo 119.º, al. c), do Código de Processo Penal - a ausência do arguido nos casos em que a lei determinar a obrigatoriedade da sua presença.
Revertendo agora diretamente ao caso em apreço, decorre dos autos que:
. O Arguido foi constituído como tal em 1 de outubro de 2015, na mesma data tendo prestado Termo de Identidade e Residência, nele mencionando como sua residência a «Rua ..., n.o.. ... », indicando para receber notificações a mesma morada.
Na mesma altura, e em conformidade com o n.o 3 do artigo 196.º do Código de Processo Penal, o Arguido tomou conhecimento:
«a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado.
b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado.
c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada, exceto se este comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada aos serviços onde os autos se encontrarem a correr nesse momento.
d) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legítima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º.
e) De que, em caso de condenação, o termo de identidade e residência só se extinguirá com a extinção da pena.» (Fls. 78 e 79 do Inquérito A apenso).
. Por despacho de 15 de abril de 2016 foi designado o dia 22 de setembro, pelas 09h30, para a realização de audiência de discussão e julgamento e, em caso de adiamento, o dia 29 de setembro de 2016, pelas 09h30. (Fls. 154)
. Em 5 de maio de 2016 foi expedido ao arguido notificação por via postal simples com prova de depósito, para a «Rua...... ». (Fls. 166 e 167)
Com data de 6 de maio de 2016, o carteiro declarou que nesse dia «depositou no recetáculo postal domiciliário da morada acima descrita a notificação a ele referente.» (Fls. 176)
. Em 22 de setembro de 2016 foi iniciada a realização da audiência de discussão e julgamento, tendo sido consignada a falta do arguido e proferido o seguinte despacho:
«Considero que a presença do arguido A. C. desde o início da audiência não é indispensável para a descoberta da verdade, pelo que, nos termos do disposto no art. 333º nos. 2 e 3 do C.P.P. iniciar-se-á a realização da audiência na ausência do arguido, o qual será representado para todos os efeitos pelo seu ilustre defensor oficioso». (Fls. 206)
. No final da sessão da audiência do dia 22 de setembro de 2016 foi proferido despacho que designou, para a sua continuação, o dia 26 de outubro de 2016, pelas 09h30, dando sem efeito a 2ª data anteriormente designada.
. Dessa nova data foi o arguido notificado, por via postal simples com prova de depósito, para a morada «Rua ... E... », expedida em 12 de outubro de 2016. (Fls. 214)
Tendo o carteiro, com data de 13 de outubro de 2016, declarado que nesse dia «depositou no recetáculo postal domiciliário da morada acima descrita a notificação a ele referente.» (Fls. 217)
O contexto processual que emana da súmula das ocorrências acabadas de descrever - relativo às sessões que tiveram lugar nos dias 22 de setembro de 2016 e 26 de outubro do mesmo ano - integra precisamente uma das exceções à obrigatoriedade da presença do arguido em audiência, prevista no artigo 333.º, n.o 1 do Código de Processo Penal «se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência».. Que se verifica quando o arguido tenha prestado Termo de Identidade e Residência (TIR), seja notificado da data designada para a realização do julgamento por via postal simples com declaração de depósito, na morada por ele indicada no TIR Em conformidade com o preceituado no n.o 3 do artigo 313.º do Código de Processo Penal. Sendo que, efetuada assim a notificação, a lei presume que o destinatário da carta depositada pelo serviço postal a recebeu e tomou conhecimento do respetivo conteúdo.. Note-se que a lei não exige que notificação do arguido para julgamento seja feita com referência à sua efetiva residência mas tão só à morada constante do TIR por ele prestado.; considerando o Tribunal que a sua presença em julgamento não «é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material».
Tendo, no caso dos autos, o arguido ausente estado sempre representado na audiência por defensor oficioso, que também não requereu a sua audição, nos termos do n.o 3 do artigo 333.º do Código de Processo Penal.
É certo que em 21.10.2016 foi junta aos autos uma mensagem enviada por correio eletrónico, a informar a falta do arguido à sessão da audiência do dia 26.10.2016, em virtude de se encontrar em França, a trabalhar; dando também conta que ele apenas estará em Portugal entre os dias 23.12.2016 e 01.01.2017, altura em que estará «disponível para ser ouvido».
Contudo, tal mensagem de forma alguma obsta à realização das duas sessões da audiência, designadamente da do dia 26 de outubro, na ausência do arguido. Desde logo porque essa comunicação não tem qualquer validade, por não conter a aposição da assinatura eletrónica do respetivo signatário, como impõe o n.o 5 do artigo 2.º da Portaria n.o 642/2004, de 16 de junho, que regula a forma de apresentação a juízo dos atos processuais enviados através de correio eletrónico. Mas, ainda que assim não fosse, a solução seria a mesma, já que naquela mensagem é apenas comunicada a falta do arguido à sessão da audiência do dia 26 de outubro, por trabalhar em França e informado o período em que ele virá a Portugal. Não sendo requerida a sua audição, nos termos do n.o 3 do artigo 333.º do Código de Processo Penal, nem esse desejo se podendo inferir daquela.
Por outro lado, também não foi cometida qualquer ilegalidade por não terem sido tomadas medidas para assegurar a presença do arguido em audiência, conforme foi já decidido por acórdão uniformizador de jurisprudência n.o 9/2012 Publicado no DR no 238, I Série, de 10 de dezembro de 2012, p. 6931., com o seguinte sumário:
«Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do n.o 1 do artigo 333.º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do n.o 3 do mesmo artigo.»
De tudo assim decorrendo que a ausência do arguido nas duas primeiras sessões da audiência não compromete a sua validade e eficácia. Não se verificando quanto a elas a nulidade da al. c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, por a lei não exigir a comparência do arguido nessas sessões.
Situação diversa já ocorre com a sessão da leitura da sentença, realizada no dia 3 de novembro de 2016, apenas na presença do defensor, mas na ausência do arguido, que para ela não foi convocada por qualquer meio, como ressalta dos autos.
É que, como já vimos supra, um dos direitos do arguido é precisamente o de estar presente a todos os atos processuais que lhe digam respeito, nos termos do artigo 61.º, n.o 1, alínea a) do Código de Processo Penal. Sendo inequivocamente um desses atos o da leitura da sentença, que representa o culminar do procedimento penal.
Aliás, a este propósito, o n.o 10 do artigo 113.° do Código de Processo Penal é perentório a estabelecer que «As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respetivo defensor ou advogado. Ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado;»
Esta norma, de interesse e ordem pública, impõe que certos atos, pela sua importância e relação com as garantias do processo penal, sejam notificados não só ao defensor como também ao arguido. Como é o caso da própria notificação da data designada para a leitura da sentença, posto que também ela faz parte integrante da audiência de julgamento, da qual constitui o seu desfecho.
Note-se que a audiência, que começa com os atos introdutórios, comporta várias fases e não termina com o encerramento da discussão - a que alude o artigo 361.º do Código de Processo Penal -, que é coisa diversa do encerramento da audiência, que em regra só ocorre com a leitura pública da decisão judicial (sentença ou acórdão Consoante a constituição singular ou colegial do tribunal, nos termos do artigo 97.º, n.o 1, al. a) e n.o 2 do Código de Processo Penal.) que conhece a final do objeto do processo.
Ora, constitui nulidade insanável, nos termos da al. c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, a ausência do arguido nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade. Situação que também se verifica em casos como o dos autos, em que o arguido está ausente processualmente, em virtude de não lhe ter sido garantido o direito de estar presente, por não ter sido regularmente notificado da data da leitura da sentença Neste sentido, cfr. os acórdãos deste TRG, de 02.12.2013, proc. 503/10.9EAPRT-A.G1 503/10.9EAPRT-A.G1; de 11.07.2013, proc. n.o 2162/12.5TABRG.G1; de 10.07.2014, proc. n.o 424/10.5GAPTL.G1; e de 23.03.2015, proc. n.o 341/12.4TABRG.G1; bem como o acórdão do TRC de 08.10.2014, proc. n.o 22/14.4GBSRT.C1; todos disponíveis em www.dgsi.pt. .
Por conseguinte, nos termos do artigo 122.º, n.o 1 do Código de Processo Penal, importa declarar essa nulidade Que foi arguida pelo recorrente, mas pode ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, conforme disposto no n.o 1 do artigo 120.º do Código de Processo Penal ., que torna inválida a diligência de leitura da sentença realizada nos autos, bem como a própria sentença (por depender do ato nulo), ordenando-se, consequentemente, a repetição dos atos viciados.
Fica em consequência prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.
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