6. A recorrente insere, no enunciado da questão de constitucionalidade, a referência a terrenos, como especificação dos recursos hídricos em causa, e a menção à não dependência da produção de danos ambientais.
Tais referências correspondem a elementos casuísticos que, em rigor, não traduzem uma particular dimensão normativa que mereça diferenciação, no
âmbito do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 226 A/2007, de 31 de maio, que apenas prevê que a mera utilização não titulada de recursos hídricos - abrangendo todos os que se inserem no âmbito da Lei n.º 58/2005, de 29/12 - constitui contra-ordenação ambiental muito grave, sem qualquer referência, como condicionante desta qualificação, à existência de quaisquer danos ambientais específicos.
Diga-se, aliás, que a circunstância de a conduta da recorrente não ter produzido "quaisquer consequências nefastas nos recursos hídricos" foi ponderada, pelo tribunal de 1.ª Instância, para determinar a atenuação especial da coima, em termos secundados pela decisão recorrida, assim se fazendo uso, de acordo com aquele primeiro tribunal, de uma válvula de segurança do sistema que permite adequar uma moldura de mínimo particularmente elevado à justiça do caso concreto.
Acresce que, como bem acentua o Ministério Público, resulta da argumentação desenvolvida pela recorrente, em sede de juízo de inconstitucionalidade, que a qualificação da contra-ordenação apenas assume relevo enquanto determinante de uma moldura legal de coima que tem como mínimo o valor de € 24.000,00, por aplicação do disposto no artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, preceito especificamente mencionado quer no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade quer na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação.
Nestes termos, delimita-se o objecto do recurso, em moldes que não comportam alteração relevante ou substantiva relativamente à forma apresentada pela recorrente, como correspondendo à questão de constitucionalidade da norma, extraível da conjugação do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-lei n.º 226 A/2007, de 31 de maio, e do artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, na redacção introduzida pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto, que, qualificando como contra-ordenação muito grave a mera utilização não titulada dos recursos hídricos, prevê que o montante mínimo da respectiva coima aplicável às pessoas colectivas, em caso de negligência, corresponda a € 24.000,00.
7. A Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, que aprova a lei-quadro das contra-ordenações ambientais, teve como base a proposta de lei n.º 20/X, apresentada pelo Governo à Assembleia da República, com o objectivo de criar um regime próprio para as contra-ordenações ambientais, passando a classificar as mesmas como "leves", "graves" e "muito graves", sendo o montante das coimas determinado em função da gravidade da infracção, da natureza do responsável como pessoa singular ou colectiva, e do grau de culpa.
O Decreto-Lei n.º 226 A/2007, de 31 de maio, surgiu para complementar a reformulação do regime sobre a utilização dos recursos hídricos e respectivos títulos iniciada com a Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro, procurando uma gestão mais eficaz da água e terrenos com ela conexos, em cumprimento de uma incumbência prioritária cometida ao Estado nos termos do artigo 81.º, alínea n), da Lei Fundamental.
Os referidos diplomas enquadram-se, assim, na protecção do direito ao ambiente, consagrado na Constituição como um direito fundamental, que, na sua dimensão negativa, se traduz num direito à abstenção, por parte do Estado e de terceiros, de acções ambientalmente nocivas e, na sua dimensão positiva, comporta um direito a uma prestação do Estado tendente a proteger esse bem jurídico, evitando a sua degradação, nomeadamente prevenindo e reprimindo os comportamentos lesivos (vide J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol I, 4.ª edição, 2007, Coimbra Editora, anotação ao artigo 66.º, pp. 845-846).
A importância do direito "a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado", plasmado no artigo 66.º, n.º 1, da Lei Fundamental, é reflectido na consagração da defesa do ambiente e da preservação dos recursos naturais, bem como na promoção do bem-estar e da qualidade de vida, nomeadamente através da efectivação de direitos ambientais, como tarefas fundamentais do Estado, nos termos das alíneas d) e e) do número 1 do artigo 9.º da Constituição. O artigo 66.º, n.º 1, parte final, da Constituição também estabelece o dever fundamental de todos os cidadãos defenderem o ambiente. Este complexo normativo justifica a imposição de restrições a outros direitos constitucionalmente protegidos, designadamente a liberdade de iniciativa económica, plasmada no artigo 61.º, n.º 1, do mesmo diploma e expressamente invocada pela aqui recorrente.
Aliás, a consagração deste direito encontra-se expressamente condicionada em função do interesse geral e dos "quadros definidos pela Constituição e pela lei", o que nos remete, desde logo, para a necessidade da sua compatibilização com objectivos constitucionalmente estabelecidos, como a aludida defesa do ambiente e preservação dos recursos naturais (vide idem, ibidem, anotação ao artigo 61.º, p. 791).
Neste contexto, as limitações ou restrições que, respeitando o núcleo essencial do direito à liberdade de iniciativa económica, sejam justificadas pela necessidade de garantir a defesa do ambiente, designadamente o controlo administrativo preventivo, mediante a sujeição da utilização de recursos naturais públicos, por particulares, a títulos de autorização, não serão constitucionalmente desconformes, desde que obedeçam ao princípio da proporcionalidade. Tal princípio igualmente deverá modelar as sanções aplicáveis ao incumprimento das normas que fixam as referidas limitações ou restrições, sendo precisamente a este nível que o cerne da presente questão de constitucionalidade se localiza.
8. A fiscalização da constitucionalidade de normas semelhantes àquela que aqui se aprecia, nomeadamente decorrentes de redacções legislativas anteriores, já foi realizada pelo Tribunal Constitucional.
De facto, o Acórdão n.º 133/2018 desta 1.ª Secção decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, que qualifica como muito grave a contraordenação ali prevista, quando praticada a título de negligência, por pessoa coletiva, tendo como referência a moldura de coima definida no artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, antes da alteração introduzida pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto.
Referiu-se, nesse aresto (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), nomeadamente, o seguinte:
«(...) [N]o âmbito das contraordenações ambientais, situamo-nos em sede de medidas preventivas, com vista a proteger um direito fundamental de grande valor e constitucionalmente tutelado, como o é o direito a um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado (artigo 66.º, n.º 1, da CRP). (...)
(...)
No caso dos autos está em causa o artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, segundo o qual constitui contraordenação ambiental muito grave a utilização de recursos hídricos sem o respetivo título, contraordenação essa punível, nos termos do artigo 22.º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006, na redação dada pela Lei n.º 89/2009, para as pessoas coletivas, em caso de negligência, com coima de €38.500,00 a €70.000,00.
(...)
O Decreto-Lei n.º 226-A/2007, veio complementar a Lei da Água, aprovada pela Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro. Como refere o Ministério Público nas contra-alegações, a necessidade de regular a exploração da água, atendendo a que se trata de um bem indispensável ao desenvolvimento e à própria existência da humanidade, escasso e facilmente degradável, é incontestável e evidente. Foi tendo em consideração essa realidade que no artigo 1.º da Lei da Água se fixaram os objetivos daquele diploma. O artigo 3.º do mesmo diploma estabelece os princípios que subjazem à referida lei, entre os quais se destaca o princípio do valor social da água, que consagra o acesso universal à água para as necessidades humanas básicas, a custo socialmente aceitável, e sem constituir fator de discriminação ou exclusão [alínea a)] e o princípio de dimensão ambiental da água, nos termos do qual se reconhece a necessidade de um elevado nível de proteção da água, de modo a garantir a sua utilização sustentável [alínea b)].
(...)
Em suma, a contraordenação consistente na utilização de recursos hídricos sem a respetiva licença é qualificada como contraordenação muito grave pelo artigo 81º, nº 3, alínea a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, em função da especial relevância dos direitos e interesses violados.
Reportando-se especificamente à norma constante da alínea a) do n.º 4 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 28 de Agosto, na redação da Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto, que prevê para as contraordenações ambientais muito graves - embora quando praticadas por pessoas singulares -, a quantia de € 20.000 como montante mínimo da coima, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 557/2011, não julgou inconstitucional tal norma, com os seguintes fundamentos:
"No caso em apreço, o legislador estabeleceu um quadro de contra-ordenações ambientais graduadas como infrações leves, graves e muito graves (como a aqui em causa), em que os limites mínimos dos montantes das coimas aplicáveis variam consoante sejam aplicáveis a pessoas singulares ou a pessoas coletivas e em função do grau da culpa (artigos 21.º e 22.º do RCOA). O citado limite mínimo foi fixado para as pessoas singulares, a título de negligência, em €200 (leves), €2000 (graves) e €20 000 (muito graves) - cfr. artigo22.º, n.ºs 2, 3 e 4 do RCOA.
Assim, forçoso é concluir que o limite mínimo da coima aqui em causa não é arbitrário, antes tem subjacente um critério legal assente na gravidade da infração e no grau da culpa e que o montante nele fixado não se revela inadmissível ou manifestamente excessivo. Pois tal limite resulta de uma escala gradativa assente na classificação tripartida da gravidade das infrações ambientais e insere-se num quadro legal em que a negligência é sempre punível (artigo 9.º, n.º 2, do RCOA); e não se mostra, em si mesmo, desadequado ou manifestamente desproporcionado relativamente à natureza dos bens tutelados e à gravidade da infração que se destina a sancionar."
Ora, demonstrada que está a adequação e exigibilidade da sanção contraordenacional como medida contra atuações que infringem regras destinadas a proteger bens jurídicos ambientais, aquilo que resta apreciar é a proporcionalidade em sentido estrito na qualificação como "muito grave" da infração em causa (...).
O Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente que o legislador ordinário dispõe de uma ampla margem de decisão quanto à fixação legal dos montantes das coimas a aplicar (ver, entre outros, os Acórdãos n.ºs 304/94, 574/95, 62/2011, 67/2011, 132/2011 e 360/2011), ainda que ressalvando que tal liberdade de definição de limites cessa em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade ou de excessiva amplitude entre os limites mínimo e máximo.
A título de exemplo, no Acórdão n.º 574/95, o Tribunal afirmou:
"Quanto ao princípio da proporcionalidade das sanções, tem, antes de mais, que advertir-se que o Tribunal só deve censurar as soluções legislativas que cominem sanções que sejam desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas, pois tal o proíbe o artigo 18º, nº 2, da Constituição. Se o Tribunal fosse além disso, estaria a julgar a bondade da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, aí, há-de gozar de uma razoável liberdade de conformação [cf., identicamente, os acórdãos nºs 13/95 (Diário da República, II série, de 9 de Fevereiro de 1995) e 83/95 (Diário da República, II série, de 16 de Junho de 1995)], até porque a necessidade que, no tocante às penas criminais é - no dizer de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal II, 1988, policopiado, página 271) - "uma conditio iuris sine qua non de legitimação da pena nos quadros de um Estado de Direito democrático e social", aqui, não faz exigências tão fortes.
De facto, no ilícito de mera ordenação social, as sanções não têm a mesma carga de desvalor ético que as penas criminais - para além de que, para a punição, assumem particular relevo razões de pura utilidade e estratégia social."
Importa ainda notar que, no caso em apreço, a infratora é uma pessoa coletiva e que o montante das coimas aplicável é, nestes casos, sempre superior. Com efeito, o Tribunal Constitucional já entendeu - embora sobre a perspetiva de análise do princípio da igualdade - que a diferença - por vezes significativa - entre os montantes das coimas aplicáveis a pessoas singulares e a pessoas coletivas não violava tal princípio, porque a "radical distinção de natureza entre pessoas singulares e colectivas exclui, desde logo, a existências de igualdade fáctica que constitui o necessário pressuposto para que se possa considerar a operatividade do princípio jurídico-constitucional da igualdade" (Acórdão n.º 569/98).
Como se escreveu no Acórdão n.º 110/2012:
"(...) o legislador pode instituir tratamento diferenciado em relação a pessoas coletivas com base justamente na específica natureza e características dessas entidades no confronto com as pessoas físicas que detenham personalidade individual. Essa fundamental distinção explica que se tenha assistido no âmbito do direito sancionatório, e em especial no domínio do direito de mera ordenação social, a uma progressiva responsabilização das pessoas coletivas, que se tem caracterizado também pelo estabelecimento de coimas de montantes mais elevados do que os determinados para as pessoas singulares em relação ao mesmo tipo de infração. Nesse sentido, o agravamento da moldura abstrata das coimas aplicáveis às pessoas coletivas foi consagrado como princípio geral no Regime Geral das Contraordenações, como ressalta do seu artigo 17º, que prevê como montante máximo da coima € 44 891,81 ou € 22 445,91, em caso de negligência, por contraponto aos limites de € 3 740,98 e € 1 870,49, para as pessoas singulares (cfr. PAULO PINTO ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das Contraordenações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, págs. 76-77)".
Em conclusão, tendo como pano de fundo a considerável margem de liberdade de conformação que foi constitucionalmente deixada ao legislador ordinário no que se refere, em geral, à matéria dos ilícitos de mera ordenação social e, em particular, ao estabelecimento das respetivas coimas, resulta claro que o montante das coimas aplicável no presente caso não se afigura excessivo e, nessa medida, não viola o princípio da proporcionalidade.
Em suma, no caso em apreço, estando-se perante uma contraordenação ambiental muito grave, assim classificada em função da especial relevância dos direitos e interesses violados, a fixação de um limite mínimo de € 38.500 à mesma, quando praticada a título de negligência, por pessoa coletiva, não viola o artigo 18.º da CRP, não sendo, por isso, inconstitucional.»
A fundamentação supra reproduzida é transponível para a análise da conformidade constitucional do critério normativo aqui em apreciação, que corresponde à norma, extraível da conjugação do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-lei n.º 226 A/2007, de 31 de maio, e do artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, na redacção introduzida pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto, que, qualificando como contra-ordenação muito grave a mera utilização não titulada dos recursos hídricos, prevê que o montante mínimo da respectiva coima aplicável às pessoas colectivas, em caso de negligência, corresponda a € 24.000,00.
Na verdade, o limite mínimo aqui especificamente colocado em causa é inferior ao estabelecido na redacção anterior e abrangido pelo juízo de não desconformidade constitucional do acórdão n.º 133/2018.
Nestes termos, conclui-se, na linha da jurisprudência já existente do Tribunal Constitucional, a propósito das molduras de coima aplicáveis por contra-ordenações ambientais qualificadas como muito graves, nomeadamente os acórdãos com os n.ºs 557/11, 110/12 e, sobretudo, 133/18, pela não inconstitucionalidade da norma aqui em análise.