A carregar. Aguarde, por favor.
Utilizador
Password
TC, 1ª Secção, Ac. de 4 de Julho de 2019

TC, 1ª Secção, Ac. de 4 de Julho de 2019

Ver Ficha

Tribunal Constitucional, 1ª Secção, Acórdão 397/2019 de 4 Jul. 2019, Processo 78/2017

Relator: Claudio Ramos Monteiro .

N.º de Acórdão: 397/2019

Processo: 78/2017

JusNet 4156/2019

Não é inconstitucional a norma que qualifica como contraordenação muito grave a mera utilização não titulada dos recursos hídricos, prevendo que o montante mínimo da respetiva coima aplicável às pessoas coletivas, em caso de negligência, corresponda a 24.000,00 euros

Resumo

NORMAS CONSTITUCIONAIS. CONTRAORDENAÇÃO. UTILIZAÇÃO DE RECURSOS HÍDRICOS. Não é julgada inconstitucional a norma, extraível da conjugação do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-lei n.º 226 A/2007, de 31 de maio, e do artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, na redação introduzida pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto, que, qualificando como contraordenação muito grave a mera utilização não titulada dos recursos hídricos, prevê que o montante mínimo da respetiva coima aplicável às pessoas coletivas, em caso de negligência, corresponda a € 24.000,00. O limite mínimo da coima tem subjacente um critério legal assente na gravidade da infração e no grau da culpa e que o montante nele fixado, resultando tal limite de uma escala gradativa assente na classificação tripartida da gravidade das infrações ambientais e inserindo-se num quadro legal em que a negligência é sempre punível. Deste modo, tendo como pano de fundo a considerável margem de liberdade de conformação que foi constitucionalmente deixada ao legislador ordinário no que se refere à matéria dos ilícitos de mera ordenação social, esse limite mínimo não se mostra desadequado ou manifestamente desproporcionado relativamente à natureza dos bens tutelados e à gravidade da infração que se destina a sancionar.

Disposições aplicadas

L n.º 50/2006, de 29 de Agosto (Lei quadro das contra-ordenações ambientais) (JusNet 1655/2006) art. 22.4 b)

DL n.º 226-A/2007, de 31 de Maio (regime da utilização dos recursos hídricos) (JusNet 1378/2007) art. 81.3 a)

Jurisprudência relacionada
Em sentido equivalente:

Ver JurisprudênciaTC, 1ª Secção, Ac. de 13 de Março de 2018 (JusNet 1603/2018)

Vide também:

Ver JurisprudênciaTC, Ac. de 7 de Outubro de 1998 (JusNet 8637/1998)

TC, Ac. de 25 de Janeiro de 1995 (JusNet 9904/1995)

Ver JurisprudênciaTC, Ac. de 21 de Fevereiro de 1995 (JusNet 9970/1995)

TC, Ac. de 18 de Outubro de 1995 (JusNet 10387/1995)

Ver JurisprudênciaTC, Ac. de 24 de Março de 1994 (JusNet 8855/1994)

Ver JurisprudênciaTC, Ac. de 2 de Fevereiro de 2011 (JusNet 263/2011)

Ver JurisprudênciaTC, Ac. de 2 de Fevereiro de 2011 (JusNet 636/2011)

Ver JurisprudênciaTC, Ac. de 3 de Março de 2011 (JusNet 1292/2011)

Ver JurisprudênciaTC, Ac. de 12 de Julho de 2011 (JusNet 3797/2011)

Ver JurisprudênciaTC, Ac. de 16 de Novembro de 2011 (JusNet 6651/2011)

Ver JurisprudênciaTC, Ac. de 6 de Março de 2012 (JusNet 1378/2012)

Texto

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I Relatório

1. Nestes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, A., Lda. interpôs recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).

2. A aqui recorrente, na qualidade de arguida em processo contra-ordenacional, impugnou judicialmente a decisão administrativa da Agência Portuguesa do Ambiente, que lhe aplicou a coima de € 38.500,00, pela prática, a título negligente, de uma contra-ordenação ambiental muito grave, prevista e punida nos termos das disposições conjugadas dos artigos 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, e 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto.

Por decisão de 4 de maio de 2016 da Secção Criminal da Instância Local de Almada, foi confirmada a condenação contra-ordenacional proferida pela autoridade administrativa, tendo, porém, o valor da coima sido reduzido para €12.000,00, por efeito, por um lado, da aplicação de regime concretamente mais favorável, atenta a alteração da lei incidente sobre as molduras abstractas da coima, e, por outro lado, por aplicação da atenuação especial da coima, nos termos do artigo 18.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.

Inconformada, a arguida interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 20 de dezembro de 2016, negado provimento ao mesmo, confirmando a decisão recorrida.

É este último acórdão que consubstancia a decisão recorrida, no âmbito do presente recurso de constitucionalidade.

3. A recorrente delimita o objecto do recurso, no respectivo requerimento de interposição, nos seguintes termos:

"(...) a inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade consignado no artigo 18.º da Constituição, da norma constante do art.º 81.º/3/a do Dec.Lei n.º 226 A/2007, de 31 de maio, quando prevê que a mera utilização não titulada de recursos hídricos, incluindo terrenos, independentemente de quaisquer danos ambientais, constitui contraordenação ambiental muito grave"

4. Notificada para apresentar alegações, a recorrente conclui, nos termos seguintes:

«1ª) A recorrente é titular do equipamento (estabelecimento de restauração e bebidas) com funções de apoio e da correspondente licença de concessão balnear, consistindo a infração na colocação de espreguiçadeiras e toldos no areal fora da área licenciada para o efeito.

2ª) Foi precisamente no âmbito da sua actividade privada empresarial de exploração do seu equipamento com funções de apoio de praia e da respectiva concessão balnear, ambas utilizações do domínio público hídrico tituladas de acordo com a legislação aplicável, que a recorrente, por negligência, colocou espreguiçadeiras e toldos no areal fora da área licenciada para o efeito.

3ª) E com fundamento na circunstância dessa área não estar compreendida no respetivo título de utilização dos recursos hídricos (in casu terrenos dominiais) a recorrente foi condenada, por falta de título de utilização dos recursos hídricos, pela práctica de uma contra-ordenação ambiental muito grave prevista no citado artº 81º/3/a do Dec.Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio (punível nos termos do artº 22º/4/b da Lei n.º 50/2006, na versão introduzida pela Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto) na coima mínima de € 24.000, a qual foi especialmente atenuada e reduzida para € 12.000.

4º) De acordo com o art.º 204.º da CRP "Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados".

5ª) No caso vertente estão em colisão o direito ao ambiente (cfr. artº 66º/1 da CRP) versus o direito de iniciativa privada (cfr. artº 61º/a da CRP).

6ª) O núcleo essencial do direito ao ambiente é a garantia de um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado, o qual não é afectado pela mera utilização não titulada de recursos hídricos, incluindo terrenos, sem produção de quaisquer danos ambientais.

7ª) Enquanto que o conteúdo essencial do direito de iniciativa privada previsto no artº 61º/1 da CRP é atingido de forma desproporcionada quando a lei prevê no artº 81º/3/a do Dec.Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, que a mera utilização não titulada de recursos hídricos, incluindo terrenos, independentemente de quaisquer danos ambientais, constitui contraordenação ambiental muito grave, cuja coima é no montante mínimo de €24.000.

8ª) Isto sendo certo que, no caso vertente, a utilização não titulada de terrenos do domínio público hídrico não causou quaisquer danos ambientais, conforme ficou provado na sentença proferida em 1.ª instância.

9º) E, por isso, a aplicação à recorrente de uma coima, ainda que reduzida a metade por via de atenuação especial, de €12.000 é manifestamente desproporcional tendo em conta que o valor que o legislador quis proteger ao instituir a obrigação de que todo o utilizador de recursos hídricos esteja titulado, autorizado e licenciado nessa utilização, não foi minimamente afectado, dada a ausência de produção de quaisquer danos no ambiente.

10ª) A norma ínsita no artº 81º/3/a do Dec.Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, segundo a interpretação normativa que lhe foi conferida pelo tribunal de 1ª instância e sufragada pelo recorrido acórdão da Relação de Lisboa é assim inconstitucional por violação do principio da proporcionalidade com assento no artº 18º da CRP

5. O Ministério Público igualmente apresentou alegações, defendendo, relativamente à delimitação do objecto do recurso, que a questão de constitucionalidade incide sobretudo no montante mínimo da coima e não na mera qualificação da infracção respectiva como contra-ordenação muito grave, enquanto questão autónoma desligada da fixação legal do montante da sanção. Acrescenta, em abono da sua tese, que a recorrente, apesar de não incluir o artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, que fixa o valor da coima aplicável, na delimitação do objecto do recurso de constitucionalidade, alude a tal preceito quer no requerimento de interposição respectivo, quer na peça processual em que cumpre o ónus de suscitação prévia previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC, ou seja, na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação.

Em conformidade, conclui o Ministério Público que deve considerar-se que o objecto do recurso corresponde à questão de constitucionalidade da norma do artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, na redacção introduzida pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto, na medida em que prevê o montante de € 24.000,00 como coima mínima aplicável às pessoas colectivas que, com negligência, pratiquem a contra-ordenação prevista no artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-lei n.º 226-a/2007, de 31 de maio, qualificada como muito grave.

No tocante ao mérito do recurso, o Ministério Público conclui nos termos seguintes:

«1. Numa jurisprudência uniforme e constante, o Tribunal Constitucional tem entendido que o legislador ordinário goza de uma ampla liberdade de conformação, na definição de crimes e fixação de penas, sendo de considerar violado o princípio de proporcionalidade (artigo 18º, nº 2, da Constituição), apenas quando a sanção se apresente como manifesta e ostensivamente excessiva.

2. Em direito sancionatório, essa ampla liberdade de legislador ordinário só pode ser maior, quando exercida fora do âmbito criminal, como é o caso do direito de mera ordenação social.

3. A distinção entre pessoas singulares e colectivas justifica, constitucionalmente, que as coimas aplicáveis a estas últimas sejam de montante superior às aplicáveis às primeiras.

4. A contra-ordenação consistente na utilização de recursos hídricos sem a respectiva licença é qualificada como contra-ordenação muito grave (artigo 81º, nº 3, alínea a) do Decreto-Lei nº 226-A/2007, de 31 de Maio), em função da especial relevância dos direitos e interesses violados.

5. Na verdade, a existência de um controlo administrativo é essencial tendo em vista a protecção preventiva e eficaz do meio ambiente e dos recursos naturais, direitos fundamentais que exigem do próprio Estado prestações positivas (artigos 9.º, alíneas d) e e) e 66.º da Constituição).

6. Assim, a norma do artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, na versão da Lei n.º 114/2015, de 28 de Agosto, na medida em que prevê o montante de 24.000,00 euros como coima mínima aplicável às pessoas colectivas que, com negligência, pratiquem a contra-ordenação prevista no artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio - qualificada como muito grave -, não viola o artigo 18º, nº 2, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.

7. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.»

Cumpre apreciar e decidir.

I Fundamentos

6. A recorrente insere, no enunciado da questão de constitucionalidade, a referência a terrenos, como especificação dos recursos hídricos em causa, e a menção à não dependência da produção de danos ambientais.

Tais referências correspondem a elementos casuísticos que, em rigor, não traduzem uma particular dimensão normativa que mereça diferenciação, no

âmbito do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 226 A/2007, de 31 de maio, que apenas prevê que a mera utilização não titulada de recursos hídricos - abrangendo todos os que se inserem no âmbito da Lei n.º 58/2005, de 29/12 - constitui contra-ordenação ambiental muito grave, sem qualquer referência, como condicionante desta qualificação, à existência de quaisquer danos ambientais específicos.

Diga-se, aliás, que a circunstância de a conduta da recorrente não ter produzido "quaisquer consequências nefastas nos recursos hídricos" foi ponderada, pelo tribunal de 1.ª Instância, para determinar a atenuação especial da coima, em termos secundados pela decisão recorrida, assim se fazendo uso, de acordo com aquele primeiro tribunal, de uma válvula de segurança do sistema que permite adequar uma moldura de mínimo particularmente elevado à justiça do caso concreto.

Acresce que, como bem acentua o Ministério Público, resulta da argumentação desenvolvida pela recorrente, em sede de juízo de inconstitucionalidade, que a qualificação da contra-ordenação apenas assume relevo enquanto determinante de uma moldura legal de coima que tem como mínimo o valor de € 24.000,00, por aplicação do disposto no artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, preceito especificamente mencionado quer no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade quer na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação.

Nestes termos, delimita-se o objecto do recurso, em moldes que não comportam alteração relevante ou substantiva relativamente à forma apresentada pela recorrente, como correspondendo à questão de constitucionalidade da norma, extraível da conjugação do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-lei n.º 226 A/2007, de 31 de maio, e do artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, na redacção introduzida pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto, que, qualificando como contra-ordenação muito grave a mera utilização não titulada dos recursos hídricos, prevê que o montante mínimo da respectiva coima aplicável às pessoas colectivas, em caso de negligência, corresponda a € 24.000,00.

7. A Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, que aprova a lei-quadro das contra-ordenações ambientais, teve como base a proposta de lei n.º 20/X, apresentada pelo Governo à Assembleia da República, com o objectivo de criar um regime próprio para as contra-ordenações ambientais, passando a classificar as mesmas como "leves", "graves" e "muito graves", sendo o montante das coimas determinado em função da gravidade da infracção, da natureza do responsável como pessoa singular ou colectiva, e do grau de culpa.

O Decreto-Lei n.º 226 A/2007, de 31 de maio, surgiu para complementar a reformulação do regime sobre a utilização dos recursos hídricos e respectivos títulos iniciada com a Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro, procurando uma gestão mais eficaz da água e terrenos com ela conexos, em cumprimento de uma incumbência prioritária cometida ao Estado nos termos do artigo 81.º, alínea n), da Lei Fundamental.

Os referidos diplomas enquadram-se, assim, na protecção do direito ao ambiente, consagrado na Constituição como um direito fundamental, que, na sua dimensão negativa, se traduz num direito à abstenção, por parte do Estado e de terceiros, de acções ambientalmente nocivas e, na sua dimensão positiva, comporta um direito a uma prestação do Estado tendente a proteger esse bem jurídico, evitando a sua degradação, nomeadamente prevenindo e reprimindo os comportamentos lesivos (vide J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol I, 4.ª edição, 2007, Coimbra Editora, anotação ao artigo 66.º, pp. 845-846).

A importância do direito "a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado", plasmado no artigo 66.º, n.º 1, da Lei Fundamental, é reflectido na consagração da defesa do ambiente e da preservação dos recursos naturais, bem como na promoção do bem-estar e da qualidade de vida, nomeadamente através da efectivação de direitos ambientais, como tarefas fundamentais do Estado, nos termos das alíneas d) e e) do número 1 do artigo 9.º da Constituição. O artigo 66.º, n.º 1, parte final, da Constituição também estabelece o dever fundamental de todos os cidadãos defenderem o ambiente. Este complexo normativo justifica a imposição de restrições a outros direitos constitucionalmente protegidos, designadamente a liberdade de iniciativa económica, plasmada no artigo 61.º, n.º 1, do mesmo diploma e expressamente invocada pela aqui recorrente.

Aliás, a consagração deste direito encontra-se expressamente condicionada em função do interesse geral e dos "quadros definidos pela Constituição e pela lei", o que nos remete, desde logo, para a necessidade da sua compatibilização com objectivos constitucionalmente estabelecidos, como a aludida defesa do ambiente e preservação dos recursos naturais (vide idem, ibidem, anotação ao artigo 61.º, p. 791).

Neste contexto, as limitações ou restrições que, respeitando o núcleo essencial do direito à liberdade de iniciativa económica, sejam justificadas pela necessidade de garantir a defesa do ambiente, designadamente o controlo administrativo preventivo, mediante a sujeição da utilização de recursos naturais públicos, por particulares, a títulos de autorização, não serão constitucionalmente desconformes, desde que obedeçam ao princípio da proporcionalidade. Tal princípio igualmente deverá modelar as sanções aplicáveis ao incumprimento das normas que fixam as referidas limitações ou restrições, sendo precisamente a este nível que o cerne da presente questão de constitucionalidade se localiza.

8. A fiscalização da constitucionalidade de normas semelhantes àquela que aqui se aprecia, nomeadamente decorrentes de redacções legislativas anteriores, já foi realizada pelo Tribunal Constitucional.

De facto, o Acórdão n.º 133/2018 desta 1.ª Secção decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, que qualifica como muito grave a contraordenação ali prevista, quando praticada a título de negligência, por pessoa coletiva, tendo como referência a moldura de coima definida no artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, antes da alteração introduzida pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto.

Referiu-se, nesse aresto (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), nomeadamente, o seguinte:

«(...) [N]o âmbito das contraordenações ambientais, situamo-nos em sede de medidas preventivas, com vista a proteger um direito fundamental de grande valor e constitucionalmente tutelado, como o é o direito a um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado (artigo 66.º, n.º 1, da CRP). (...)

(...)

No caso dos autos está em causa o artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, segundo o qual constitui contraordenação ambiental muito grave a utilização de recursos hídricos sem o respetivo título, contraordenação essa punível, nos termos do artigo 22.º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006, na redação dada pela Lei n.º 89/2009, para as pessoas coletivas, em caso de negligência, com coima de €38.500,00 a €70.000,00.

(...)

O Decreto-Lei n.º 226-A/2007, veio complementar a Lei da Água, aprovada pela Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro. Como refere o Ministério Público nas contra-alegações, a necessidade de regular a exploração da água, atendendo a que se trata de um bem indispensável ao desenvolvimento e à própria existência da humanidade, escasso e facilmente degradável, é incontestável e evidente. Foi tendo em consideração essa realidade que no artigo 1.º da Lei da Água se fixaram os objetivos daquele diploma. O artigo 3.º do mesmo diploma estabelece os princípios que subjazem à referida lei, entre os quais se destaca o princípio do valor social da água, que consagra o acesso universal à água para as necessidades humanas básicas, a custo socialmente aceitável, e sem constituir fator de discriminação ou exclusão [alínea a)] e o princípio de dimensão ambiental da água, nos termos do qual se reconhece a necessidade de um elevado nível de proteção da água, de modo a garantir a sua utilização sustentável [alínea b)].

(...)

Em suma, a contraordenação consistente na utilização de recursos hídricos sem a respetiva licença é qualificada como contraordenação muito grave pelo artigo 81º, nº 3, alínea a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, em função da especial relevância dos direitos e interesses violados.

Reportando-se especificamente à norma constante da alínea a) do n.º 4 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 28 de Agosto, na redação da Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto, que prevê para as contraordenações ambientais muito graves - embora quando praticadas por pessoas singulares -, a quantia de € 20.000 como montante mínimo da coima, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 557/2011, não julgou inconstitucional tal norma, com os seguintes fundamentos:

"No caso em apreço, o legislador estabeleceu um quadro de contra-ordenações ambientais graduadas como infrações leves, graves e muito graves (como a aqui em causa), em que os limites mínimos dos montantes das coimas aplicáveis variam consoante sejam aplicáveis a pessoas singulares ou a pessoas coletivas e em função do grau da culpa (artigos 21.º e 22.º do RCOA). O citado limite mínimo foi fixado para as pessoas singulares, a título de negligência, em €200 (leves), €2000 (graves) e €20 000 (muito graves) - cfr. artigo22.º, n.ºs 2, 3 e 4 do RCOA.

Assim, forçoso é concluir que o limite mínimo da coima aqui em causa não é arbitrário, antes tem subjacente um critério legal assente na gravidade da infração e no grau da culpa e que o montante nele fixado não se revela inadmissível ou manifestamente excessivo. Pois tal limite resulta de uma escala gradativa assente na classificação tripartida da gravidade das infrações ambientais e insere-se num quadro legal em que a negligência é sempre punível (artigo 9.º, n.º 2, do RCOA); e não se mostra, em si mesmo, desadequado ou manifestamente desproporcionado relativamente à natureza dos bens tutelados e à gravidade da infração que se destina a sancionar."

Ora, demonstrada que está a adequação e exigibilidade da sanção contraordenacional como medida contra atuações que infringem regras destinadas a proteger bens jurídicos ambientais, aquilo que resta apreciar é a proporcionalidade em sentido estrito na qualificação como "muito grave" da infração em causa (...).

O Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente que o legislador ordinário dispõe de uma ampla margem de decisão quanto à fixação legal dos montantes das coimas a aplicar (ver, entre outros, os Acórdãos n.ºs 304/94, 574/95, 62/2011, 67/2011, 132/2011 e 360/2011), ainda que ressalvando que tal liberdade de definição de limites cessa em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade ou de excessiva amplitude entre os limites mínimo e máximo.

A título de exemplo, no Acórdão n.º 574/95, o Tribunal afirmou:

"Quanto ao princípio da proporcionalidade das sanções, tem, antes de mais, que advertir-se que o Tribunal só deve censurar as soluções legislativas que cominem sanções que sejam desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas, pois tal o proíbe o artigo 18º, nº 2, da Constituição. Se o Tribunal fosse além disso, estaria a julgar a bondade da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, aí, há-de gozar de uma razoável liberdade de conformação [cf., identicamente, os acórdãos nºs 13/95 (Diário da República, II série, de 9 de Fevereiro de 1995) e 83/95 (Diário da República, II série, de 16 de Junho de 1995)], até porque a necessidade que, no tocante às penas criminais é - no dizer de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal II, 1988, policopiado, página 271) - "uma conditio iuris sine qua non de legitimação da pena nos quadros de um Estado de Direito democrático e social", aqui, não faz exigências tão fortes.

De facto, no ilícito de mera ordenação social, as sanções não têm a mesma carga de desvalor ético que as penas criminais - para além de que, para a punição, assumem particular relevo razões de pura utilidade e estratégia social."

Importa ainda notar que, no caso em apreço, a infratora é uma pessoa coletiva e que o montante das coimas aplicável é, nestes casos, sempre superior. Com efeito, o Tribunal Constitucional já entendeu - embora sobre a perspetiva de análise do princípio da igualdade - que a diferença - por vezes significativa - entre os montantes das coimas aplicáveis a pessoas singulares e a pessoas coletivas não violava tal princípio, porque a "radical distinção de natureza entre pessoas singulares e colectivas exclui, desde logo, a existências de igualdade fáctica que constitui o necessário pressuposto para que se possa considerar a operatividade do princípio jurídico-constitucional da igualdade" (Acórdão n.º 569/98).

Como se escreveu no Acórdão n.º 110/2012:

"(...) o legislador pode instituir tratamento diferenciado em relação a pessoas coletivas com base justamente na específica natureza e características dessas entidades no confronto com as pessoas físicas que detenham personalidade individual. Essa fundamental distinção explica que se tenha assistido no âmbito do direito sancionatório, e em especial no domínio do direito de mera ordenação social, a uma progressiva responsabilização das pessoas coletivas, que se tem caracterizado também pelo estabelecimento de coimas de montantes mais elevados do que os determinados para as pessoas singulares em relação ao mesmo tipo de infração. Nesse sentido, o agravamento da moldura abstrata das coimas aplicáveis às pessoas coletivas foi consagrado como princípio geral no Regime Geral das Contraordenações, como ressalta do seu artigo 17º, que prevê como montante máximo da coima € 44 891,81 ou € 22 445,91, em caso de negligência, por contraponto aos limites de € 3 740,98 e € 1 870,49, para as pessoas singulares (cfr. PAULO PINTO ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das Contraordenações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, págs. 76-77)".

Em conclusão, tendo como pano de fundo a considerável margem de liberdade de conformação que foi constitucionalmente deixada ao legislador ordinário no que se refere, em geral, à matéria dos ilícitos de mera ordenação social e, em particular, ao estabelecimento das respetivas coimas, resulta claro que o montante das coimas aplicável no presente caso não se afigura excessivo e, nessa medida, não viola o princípio da proporcionalidade.

Em suma, no caso em apreço, estando-se perante uma contraordenação ambiental muito grave, assim classificada em função da especial relevância dos direitos e interesses violados, a fixação de um limite mínimo de € 38.500 à mesma, quando praticada a título de negligência, por pessoa coletiva, não viola o artigo 18.º da CRP, não sendo, por isso, inconstitucional.»

A fundamentação supra reproduzida é transponível para a análise da conformidade constitucional do critério normativo aqui em apreciação, que corresponde à norma, extraível da conjugação do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-lei n.º 226 A/2007, de 31 de maio, e do artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, na redacção introduzida pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto, que, qualificando como contra-ordenação muito grave a mera utilização não titulada dos recursos hídricos, prevê que o montante mínimo da respectiva coima aplicável às pessoas colectivas, em caso de negligência, corresponda a € 24.000,00.

Na verdade, o limite mínimo aqui especificamente colocado em causa é inferior ao estabelecido na redacção anterior e abrangido pelo juízo de não desconformidade constitucional do acórdão n.º 133/2018.

Nestes termos, conclui-se, na linha da jurisprudência já existente do Tribunal Constitucional, a propósito das molduras de coima aplicáveis por contra-ordenações ambientais qualificadas como muito graves, nomeadamente os acórdãos com os n.ºs 557/11, 110/12 e, sobretudo, 133/18, pela não inconstitucionalidade da norma aqui em análise.

III Decisão

9. Pelo exposto, decide-se:

- não julgar inconstitucional a norma, extraível da conjugação do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-lei n.º 226 A/2007, de 31 de maio, e do artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, na redacção introduzida pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto, que, qualificando como contra-ordenação muito grave a mera utilização não titulada dos recursos hídricos, prevê que o montante mínimo da respectiva coima aplicável às pessoas colectivas, em caso de negligência, corresponda a € 24.000,00;

- em consequência, negar provimento ao recurso interposto.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Lisboa, 4 de julho de 2019 - Claudio Monteiro - José Teles Pereira - Maria de Fátima Mata-Mouros - João Pedro Caupers - Manuel da Costa Andrade

Último número

Opciones