I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., o primeiro veio interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão proferida por aquele Tribunal no dia 31 de janeiro de 2017 que julgou procedente ação administrativa especial intentada com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa, por naturalização, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade).
O tribunal recorrido desaplicou a norma decorrente daquele preceito e do artigo 19.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), «por violação do princípio da proporcionalidade, na dimensão de necessidade, previsto no artº 18º nº 2 do CRP, por ofensa [em violação do disposto no artº 18º nº 3 da CRP] do conteúdo essencial do preceito ínsito no nº 1 do artº 26º do CRP e por violação da proibição constitucional dos efeitos automáticos das penas criminais, consagrada no artº 30º nº 4 da CRP ». Consequentemente, o Ministério Público interpôs recurso dessa decisão.
2. O Ministério Público junto deste Tribunal apresentou alegações de recurso, de que fez constar as seguintes conclusões:
«a) Objeto do recurso
1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para o mesmo obrigatório, "da douta sentença proferida nos autos à margem referenciados" [proc. n.º 730/14.0BELLSB, do TAC de Lisboa-UO 1], o qual tem por objeto "a recusa da aplicação da norma ínsita nas alíneas d) do n.º 1, do artº 6º da LN e d) do nº 1, do artº 19º do Regulamento de Nacionalidade, por serem inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade, na dimensão de necessidade, previsto no artº 18º nº 2 da CRP, por ofensa (em violação do disposto no artº 18º nº 3 da CRP) do conteúdo essencial do preceito ínsito no nº 1 do artº 26º da CRP e por violação da proibição constitucional dos efeitos automáticos das penas criminais, consagrada no artº 30º nº 4 da CRP".
2.ª) Das fontes constitucionais relevantes não procede um "direito fundamental de acesso à cidadania portuguesa", que esteja constitucionalmente determinado e seja, consequentemente, imediatamente aplicável pelos órgãos administrativos ou judiciais (arts. 4.º, 26.º, n.º 1, 164.º, al. f), e 166.º, n.º 2).
3.ª) O que tem base jurídica nessas fontes constitucionais, sim, é uma pretensão jurídica e uma imposição legiferante, ambas tendo como objeto o decretamento de lei (regime jurídico) regulando, de modo constitucionalmente conforme, o acesso à cidadania portuguesa.
4.ª) Por conseguinte, havendo já lei concretizadora, a presente questão de constitucionalidade redundará em determinar se as previsões normativas das disposições controvertidas, no caso em matéria das condições penais da obtenção da cidadania portuguesa, são conformes com as já mencionadas vinculações constitucionais.
b) Princípio da proporcionalidade
5.ª) "Não podem ser consideradas como de restrição aquelas hipóteses em que a Constituição remete para uma determinação legislativa autónoma a própria configuração do conteúdo dos direitos e garantias fundamentais" (VIEIRA DE ANDRADE).
6.ª) É esse precisamente o caso, pois aqui a Assembleia da República está constitucionalmente mandatada, por virtude da aludida imposição legiferante, para definir, constitutivamente, o conteúdo do "direito fundamental à cidadania portuguesa".
7.ª) O "conteúdo essencial" (mínimo) passível de ser deduzido do teor dos artigos 4.º (puro reenvio para a lei e convenção internacional) e 26.º, n.º 1 (que se queda pela mera denominação do direito), é o de uma pretensão jurídica e imposição legiferante à emanação de lei (regime jurídico) regulando, de modo constitucionalmente conforme, o acesso à cidadania portuguesa, e isso não se está a negar ao recorrido.
8.ª) Quanto à questão do caráter geral (vinculado) ou casuístico ("discricionariedade administrativa") da determinação dos antecedentes criminais que servem como indício da idoneidade do requerente, a lei constitucional não institui ou revela objetivamente qualquer critério, pelo que esta matéria vai necessariamente deferida à "liberdade de conformação" do legislador, ou seja, é matéria de escolha legal e não de decisão judicial.
9.ª) No caso em apreço, a opção legislativa por um critério de "cláusula geral" (vinculado), em detrimento de um critério "casuístico" (discricionário), pode ser abonado em impecáveis credenciais constitucionais, pois favorece um tratamento objetivo, igualitário e imparcial das pretensões de naturalização, o que mais dificilmente poderia ser conseguido por apreciações casuísticas ou de "discricionariedade administrativa", as quais são naturalmente propícias a criar diversidade de tratamento, que se poderia revelar intolerável (art. 13.º, n.ºs 1 e 2).
10.ª) Por outra parte, a apreciação da idoneidade do requerente da nacionalidade, nomeadamente através de critérios penais, não é um domínio natural, inelutável e indiscutível, da "liberdade de escolha" da administração ― e dos juízos "subjetivos", nomeadamente prognoses sobre "disposições pessoais" e do "âmbito de livre apreciação", ainda que judicialmente fiscalizáveis, que lhe são intrinsecamente inerentes.
11.ª) Sendo certo, importa acrescentar, que a competência para fazer essa ponderação casuística já está prevista na lei, sendo deferida ao juiz penal da causa ou de execução das penas, os mais próximos das pessoas e dos factos em causa.
12.ª) Aliás, não são verdadeiramente alternativos os critérios da cláusula geral (vinculado) e casuístico ("discricionariedade administrativa"), pois têm subjacentes duas visões diferenciadas sobre o método preferível para apurar da idoneidade do requerente, que dependem assim de puras escolhas e preferências volitivas do legislador.
13.ª) Os tribunais, sob pena de ofensa do princípio constitucional de separação dos poderes, não se poderão substituir ao legislador em matéria de escolhas que, no seu âmago, relevam da pura política legislativa (art. 111.º, n.º 1).
14.ª) Em suma, as normas jurídicas controvertidas nem são restritivas, nem são "excessivas" ― no sentido em que, ceteris paribus quanto aos interesses públicos relevantes, não há solução alternativa que seja preferível, por menos intrusiva ou mais benigna para os interesses dos requentes ― sendo certo que promovem um tratamento igualitário dos casos e, finalmente, em nada precludem o normal funcionamento do regime jurídico da identificação criminal, pelo que não concorre violação do princípio constitucional da proporcionalidade.
c) Efeitos das penas e condenações criminais
15.ª) O caso em apreço não é passível de ser legitimamente imputado ao domínio de aplicação e ao espírito da proibição constitucional dos efeitos necessários ("automáticos") das penas, a qual visa fulminar aquelas consequências que resultam inelutavelmente, sem mediação de um juízo autónomo de ponderação, que não tem de ser necessariamente judicial ou administrativo, da prévia aplicação de penas ou condenações.
16.ª) Do que se trata, em sede dos pressupostos escolhidos pelo legislador para a aquisição da nacionalidade portuguesa, por naturalização, não é de efeitos "automáticos" da "condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa" mas, antes, de uma escolha deliberada e de caso pensado do legislador, no âmbito da liberdade de conformação que lhe é constitucionalmente atribuída, em ordem a determinar da idoneidade do requerente à aquisição derivada da nacionalidade portuguesa.
17.ª) Não há, pois, aqui efeitos "automáticos" de uma prévia condenação, mas antes a eleição deliberada desses factos, em ato legislativo interposto e autónomo, como um dos pressupostos da norma jurídica de aquisição da nacionalidade portuguesa, por naturalização, certamente com a funcionalidade de determinar, objetivamente, a idoneidade do requerente à obtenção desse status da nacionalidade portuguesa.
18.ª) Por outra parte, o preceito em apreço, na sua letra, rege declaradamente em matéria de "perda de quaisquer direitos", mas aqui não há verdadeiramente ablação, ou sequer atentado, a um direito de que o requerente fosse titular, pois que isso depende, precisamente, da verificação dos pressupostos legais para o efeito, o que não se verifica no caso.
19.ª) Finalmente, embora só por mera cautela de argumentação, sempre se dirá que as normas jurídicas controvertidas não materializam qualquer efeito perpétuo da prévia condenação definitiva, em sede penal, pois tal é postergado pela devida consideração a atribuir ao regime jurídico da identificação criminal, nomeadamente no que respeita aos certificados requeridos para fins diversos de emprego ou de exercício de atividade, quanto aos institutos do cancelamento definitivo, cancelamento provisório ou das decisões não transcritas.
20.ª) Portanto, as normas jurídicas controvertidas nem são subsumíveis no domínio de aplicação desta proibição constitucional, nem verdadeiramente consubstanciam ablação, ou sequer atentado, ao "direito fundamental à cidadania portuguesa", nem precludem a aplicação do regime cessação de efeitos ou limitação do acesso à informação criminal, pelo que não há violação no caso vertente do denominado "princípio da não automaticidade dos efeitos das penas" (art. 30.º, n.º 4).
Nestes termos, por concorrer erro de julgamento da questão de constitucionalidade, é de conceder provimento ao presente recurso, revogando a douta decisão recorrida, baixando então os autos ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (UO 1), nos termos e para os legais efeitos (LOFPTC, art. 80.º, n.º 2).»
3. O recorrido contra-alegou, concluindo que:
«Da aplicação de uma pena não podem decorrer efeitos que impliquem, de uma forma automática, a perda de direitos civis, políticos ou profissionais, uma vez que os efeitos da pena estão submetidos não apenas aos princípios- garantia das penas e medidas de segurança, como também ao princípio da proporcionalidade.
O julgador, na apreciação do preenchimento do critério de acordo com o qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com transito em julgado da sentença, pela pratica de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, não pode estar impedido, em toda e qualquer situação, de valorar as demais circunstâncias associadas à condenação, pela pratica de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, designadamente a efetiva execução da pena aplicada, a ocorrência da extinção da pena, a dispensa de pena.
O indeferimento do pedido de aquisição da nacionalidade não pode ser aplicado, sem existir uma ponderação das circunstâncias do caso concreto à luz do princípio da proporcionalidade e desconsiderar as circunstâncias que levaram o próprio legislador a impor a substituição da pena abstratamente aplicada por pena não privativa da liberdade, como sucede no caso em apreço, em que o Requerente foi condenado
Nestes termos, deve o presente recurso ser considerado improcedente, devendo manter-se a douta decisão recorrida do tribunal A QUO.»
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
4.
Todos os elementos processualmente relevantes acima indicados (i.e. a decisão recorrida, o requerimento de recurso, as alegações do Ministério Público e as contra-alegações do recorrido) se basearam no pressuposto de que a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização depende, inter alia, do pressuposto de que o interessado não tenha sido condenado, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa. Era isso que prescrevia o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Lei da Nacionalidade, na redação que se encontrava em vigor naqueles momentos processuais, i.e., na redação conferida àquele diploma pela Lei Orgânica n.º 9/2015, de 29 de julho - a qual, de resto, no que respeita ao preceito em apreço, é idêntica à que fora introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril.
Todavia, a norma que a decisão recorrida desaplicou foi revogada, prevendo-se agora no mesmo preceito - o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Lei da Nacionalidade, alterada pela Lei Orgânica n.º 2/2018, de 5 de julho - que: «O Governo concede a nacionalidade portuguesa, por naturalização, aos estrangeiros que satisfaçam cumulativamente os seguintes requisitos: (...) Não tenham sido condenados, com trânsito em julgado da sentença, com pena de prisão igual ou superior a 3 anos». É certo que da letra do artigo 19.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade - na sua última redação (i.e., a que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 71/2017, de 21 de junho) - continua a contar «pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos». Por outro lado, o artigo 4.º a Lei Orgânica n.º 2/2018 incumbe o Governo de proceder «às necessárias alterações ao Regulamento da Nacionalidade (...) no prazo de 30 dias a contar da publicação da presente lei», o que, de momento, ainda não aconteceu. Porém, aquela norma do Regulamento da Nacionalidade deve ter-se por revogada tacitamente pela Lei Orgânica n.º 2/2018, que constitui não apenas lei posterior, mas também lei de valor paramétrico superior a esse Regulamento.
5.
A revogação superveniente de uma norma é suscetível de se repercutir no conhecimento dos recursos de constitucionalidade a ela respeitantes: cf., relativamente à fiscalização abstrata da constitucionalidade, e.g. o Acórdão n.º 426/2018; relativamente à fiscalização concreta e, mais especificamente, a recursos interpostos ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (como é o caso do recurso aqui em apreço), e.g. o Acórdão n.º 281/2010.
No caso em apreço, o recorrido foi punido como cúmplice em pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por um crime de roubo, abstratamente punível com pena de prisão entre 1 e 8 anos, nos termos do disposto no artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal. O próprio despacho do Instituto dos Registos e do Notariado I.P. que indeferiu o pedido de concessão da nacionalidade e deu causa à ação administrativa especial intentada pelo recorrido sublinhou que essa decisão se impunha em virtude de o critério legal ser o de ter sido praticado «crime punível » (sublinhado no original) com moldura penal de dado limite máximo (que, no caso, era atingido), «sendo irrelevante a pena efetivamente aplicada» (que, no caso, seria inferior àquele limite, caso o mesmo se reportasse à medida concreta da pena) - vd. o verso da fl. 108 dos autos.
A referida alteração legislativa tem, pois, um impacto positivo para candidatos à obtenção da nacionalidade portuguesa que se apresentem em circunstâncias como aquelas que envolvem o aqui recorrido. No entanto, atento o disposto no regime transitório previsto no artigo 5.º da Lei Orgânica n.º 2/2018, essa alteração não se afigura aplicável aos presentes autos, mas apenas poderia aproveitar ao recorrido num futuro requerimento que o mesmo viesse a submeter com vista a obter a nacionalidade portuguesa. Esta circunstância tem implicações jurídicas relevantes, visto que a aquisição da nacionalidade só produz efeitos a partir da data do registo (cf. os artigos 12.º da Lei da Nacionalidade e 12.º do Regulamento da Nacionalidade) - em contraste com o que acontece com a atribuição de nacionalidade originária, que produz efeitos desde o nascimento (cf. os artigos 11.º da Lei da Nacionalidade e 2.º do Regulamento da Nacionalidade). Por essa razão, impõe-se conhecer o objeto do presento recurso.
6.
Constitui, pois, objeto do presente recurso a norma, extraída do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de outubro), na redação que lhe foi conferida pela Lei Orgânica n.º 9/2015, de 29 de julho, vigente à data da decisão recorrida, nos termos da qual a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização depende, entre outros, do pressuposto de que o interessado não tenha sido condenado, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa.
Nesta versão, a Lei da Nacionalidade continuou a condicionar a obtenção de nacionalidade por naturalização ao pressuposto (objetivo) de que o requerente não tenha cometido crime de determinada gravidade, mantendo-se assim fiel ao paradigma introduzido pela Lei Orgânica n.º 2/2006, que expurgara do regime da naturalização o requisito da "idoneidade cívica", de natureza acentuadamente subjetiva - vd. RUI MOURA RAMOS, "A Renovação do Direito Português da Nacionalidade pela Lei Orgânica n.º 2/2006", de 17 de abril, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 136, n.º 3943 (2007), p. 207 ss.
Conforme se afirmou no Acórdão n.º 106/2016 em relação ao fundamento homólogo de oposição à aquisição da nacionalidade, constante do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade, através deste requisito o legislador procurou, em certa medida, «obstar a que aqueles que, por via da prática daqueles crimes, judicialmente aferida, ofenderam os bens jurídicos a que a comunidade nacional entendeu conferir uma tutela jurídico-penal traduzida numa moldura penal de máximo igual ou superior a três anos, integrem a comunidade cujos bens (assim) tutelados não respeitaram». Entendeu então este Tribunal que «a condição de não ocorrência de condenação (...) corresponde, ainda, à densificação do vínculo de ligação efetiva entre a pessoa e o Estado (português) que baseia a cidadania».
Embora o legislador tenha reduzido significativamente a discricionariedade administrativa na aferição da idoneidade dos requerentes, a aplicação deste requisito legal não deixou de suscitar dificuldades assinaláveis aos tribunais administrativos - vd. CONSTANÇA URBANO DE SOUSA, "A naturalização do estrangeiro residente: concretização do direito fundamental à cidadania portuguesa - Ac. do STA de 5.2.2013, P. 76/12", Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 107 (2014), p. 23 s. O problema da aplicação literal e imediata deste requisito colocou-se sobretudo em casos em que a pena concretamente aplicada sugeria que o crime apresentava uma gravidade reduzida, não permitindo por isso que se «retira[sse] da condenação criminal em causa a infirmação dessa mesma ideia de efetividade do vínculo de ligação» (Acórdão n.º 106/2016).
7.
Também na jurisprudência do Tribunal Constitucional se encontra testemunho dos problemas colocados pelo requisito relativo à ausência de condenação por crime punível com pena de prisão igual ou superior a três anos, quando interpretado literalmente - ou seja, com o sentido de uma tal decisão judicial condenatória obstar, em todo e qualquer caso, à concessão da nacionalidade. Enquanto fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa por efeito da vontade, o requisito mereceu a censura deste Tribunal por se mostrar incompatível com a realização de outras exigências e princípios que a Lei Fundamental igualmente tutela, em dois juízos formulados em termos e com fundamentos distintos.
No Acórdão n.º 106/2016, considerou-se que este fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade não ofendia a proibição de efeitos automáticos e necessários das penas, consagrada no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição. Todavia, verificou-se que uma tal exigência era inconciliável com «a ponderação feita pelo mesmo legislador em sede de cessação da vigência no registo criminal das decisões nele inscritas, assim correspondendo a uma reabilitação legal». Ante esta aparente contradição, concluiu o Tribunal que «não se afiguraria constitucionalmente admissível uma interpretação das normas da alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade portuguesa e da alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade portuguesa, nas versões aplicadas nos autos, que desconsiderasse a ponderação do legislador efetuada em sede de cessação da vigência da condenação penal inscrita no registo criminal e seu cancelamento e a correspondente reabilitação legal, sob pena de contradição intrassistémica, justifica-se proferir uma decisão interpretativa, ao abrigo do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da LTC, devendo o Tribunal recorrido adotar a interpretação que se julgou conforme à Constituição e, assim, reformular a fundamentação da solução encontrada para o caso concreto ali em julgamento.»
Já no Acórdão n.º 331/2016, a mesma norma foi julgada inconstitucional, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, por não permitir qualquer ponderação das «circunstâncias do caso concreto em que o próprio legislador desvalorizou os ilícitos penais em causa, como acontece (...) com aqueles em que se permite a dispensa de pena».
8.
A Lei Orgânica n.º 2/2018, de 5 de julho, entretanto publicada, veio alterar o conteúdo do requisito de aquisição de nacionalidade portuguesa por naturalização previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade (nos termos já acima referidos), tendo igualmente alterado o conteúdo do paralelo fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do mesmo diploma.
À semelhança do que tem vindo a verificar-se em outros aspetos do ordenamento jurídico português, o legislador deixou de utilizar como critério a moldura penal abstrata (no caso, o seu limite máximo), tendo passado a utilizar, para os mesmos efeitos, a pena concretamente aplicada. Como se lê no Projeto de Lei n.º 544/XIII (em www.parlamento.pt), optou-se, em matéria de naturalização, «pela avaliação da medida concreta da pena a que o requerente possa ter sido condenado, ao invés de atender à moldura penal máxima do tipo de ilícito, que não permite ponderar devidamente a culpa e a gravidade do ilícito e retirar consequências ponderadas em sede de atribuição da nacionalidade» (p. 3).
9.
Em matéria de acesso à nacionalidade portuguesa, a jurisprudência deste Tribunal tem vindo a reafirmar algumas premissas fundamentais originariamente desenvolvidas no Acórdão n.º 599/2005:
Em primeiro lugar, a de que o direito à cidadania portuguesa tem a natureza de direito fundamental, o que «postula a sua subordinação a alguns corolários garantísticos que constitucionalmente enformam os direitos fundamentais, nomeadamente, aos princípios da sua universalidade e da igualdade, a vocação para a sua aplicabilidade direta, a vinculação de todas as autoridades públicas e privadas e a sujeição das restrições legais ao regime exigente constante dos nºs 2 e 3 do artigo 18º da CRP ».
Em segundo lugar, a de que não só deve ser reconhecido o direito fundamental a não ser privado da cidadania portuguesa, como deve também reconhecer-se o direito de aceder à cidadania portuguesa a qualquer pessoa que tenha a expectativa jurídica de a adquirir, «observados que sejam determinados pressupostos que o legislador interno entende como expressando aquele vínculo de integração efetiva na comunidade nacional».
Em terceiro lugar, a de que o legislador não goza de liberdade ilimitada na determinação desses pressupostos, porquanto dos artigos 4.º e 26.º, n.os 1 e 4, da Constituição - assim como de outros preceitos constitucionais e de direito internacional (sobretudo do artigo 15.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 19/2000, de 06 de março, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 7/2000 e publicada no Diário da República, 1ª Série-A, n.º 55) -, resulta delimitado um «conteúdo mínimo que o legislador ordinário não poderá postergar na definição do regime de acesso ao direito em causa».
Em quarto e último lugar, a de que, consequentemente, as condições legalmente fixadas para o acesso à cidadania, «[p]or mor da força vinculativa da natureza de direito fundamental de que comunga o direito em causa», não poderão deixar de «passar o crivo da adequação, necessidade e proporcionalidade, tendo em vista precisamente a preservação do núcleo essencial de tal direito que, por natureza, há de corresponder à evidenciação de um específico vínculo de integração na comunidade portuguesa».
10.
Entre os princípios de direito internacional que ao legislador se impõe respeitar neste âmbito, «avulta (para além do direito de aceder a uma nacionalidade e a dela não ser privado) o princípio da ligação efetiva entre o indivíduo e a comunidade politicamente organizada em que se integra» (Acórdão n.º 106/2016). Como é sabido, a concretização do que deve considerar-se a «nacionalidade real e efetiva» para efeitos de naturalização (em especial de cidadãos que já são nacionais de outro Estado) apela a diferentes indícios de efetiva ligação vivencial ao Estado que confere a nacionalidade, de entre os quais sobressai a residência habitual e permanente (vd. v.g. o artigo 6.º, n.º 3, da já referida Convenção Europeia sobre a Nacionalidade). Por outro lado, uma tal concretização é também determinada pela «inevitável comunicação entre direito da nacionalidade e valores constitucionais» (Acórdão n.º 605/2013) e pelo direito internacional (cf. os artigos 4.º e 16.º, n.º 2, da Constituição)
A essa luz, revela-se especialmente digna de tutela a expectativa de um residente que preencha requisitos que, à luz do direito internacional, o Estado português se encontre adstrito a valorizar (como os elencados no artigo 6.º da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade), ou que aspire a beneficiar da proteção conferida pela Constituição da República Portuguesa a outros fatores (que não se esgotam na proteção da família e da infância conferida pelos artigos 36.º, 64.º, n.º 2, alínea b), e 67.º - atente-se, v.g., na especial consideração dedicada pelo artigo 15.º, n.º 3, aos cidadãos dos Estados de língua portuguesa). De modo simétrico, será especialmente imerecida a proteção das expectativas de um residente cuja conduta, por evidenciar uma manifesta desconsideração pelos princípios e valores constitucionais por que se rege o Estado a que requer nacionalidade, indicia a ausência de uma efetiva ligação a essa mesma comunidade.
11.
Ora, se o reconhecimento de um núcleo essencial do direito à cidadania não pode ser dissociado da «evidenciação de um específico vínculo de integração na comunidade portuguesa», também não se vê como possa prescindir de uma adequada ponderação dos fatores que objetivamente confirmam ou infirmam esse vínculo. Deste modo, qualquer requisito legal, quando interpretado no sentido de não permitir a avaliação de circunstâncias concretas que a própria comunidade se vinculou a valorar ou a não valorar (seja através do legislador nacional, seja através dos compromissos internacionais assumidos), dificilmente poderá passar o crivo do princípio da proporcionalidade.
O caso dos autos é disso mesmo exemplar, visto estarmos perante um indivíduo: (i) que é cidadão de um país de língua portuguesa (cf. o artigo 15.º, n.º 3, da Constituição); (ii) que reside em Portugal desde que é menor, tendo aqui completado pelo menos um ciclo de escolaridade (cf. o artigo 6.º, n.º 4, alínea f), da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade); (iii) que foi condenado numa pena de prisão de 1 (um) ano, suspensa na sua execução por igual período (ao abrigo do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal); e (iv) cuja condenação o juiz determinou que nem fosse transcrita para os certificados de registo criminal requeridos para efeitos de emprego, exercício de atividade ou outros fins (nos termos previstos, àquela data, no artigo 17.º da Lei n.º 57/98, de 18 de agosto, na redação da Lei n.º 114/2009, de 22 de setembro, hoje no artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio).
Importará sublinhar que, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, a suspensão da execução de uma pena de prisão apenas é possível: (i) se a pena concretamente aplicada não for superior a 5 (cinco) anos, medida de pena que traça a fronteira do conceito de pequena-média criminalidade relevante para inúmeros efeitos jurídicos, tanto processuais como substantivos (cf. MARIA JOÃO ANTUNES, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, p. 22); e (ii) se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o tribunal puder concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Mais exigentes ainda são as condições em que o legislador permitiu a não transcrição de decisões condenatórias. Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 57/98 (semelhante ao vigente artigo 13.º da Lei n.º 37/2015), a não transcrição é possível somente quando: (i) a medida da pena concretamente aplicada não for superior a 1 (um) ano (medida que se integra ainda no conceito de pequena criminalidade: cf. ibidem); e (ii) das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes.
12.
Na medida em que inviabiliza a ponderação dos fatores que objetivamente evidenciam um específico vínculo de integração na comunidade portuguesa, a imposição de uma condição que se baseia única e exclusivamente na pena abstratamente aplicável às condutas criminosas tidas como demonstrativas da inexistência dessa efetiva ligação, embora possa considerar-se adequada à prossecução dos fins que visa atingir, não resiste ao teste da necessidade, devendo reconhecer-se que os mesmos fins poderiam ser atingidos por medidas menos onerosas para o requerente de acesso à cidadania, que garantissem a preservação do núcleo essencial do direito fundamental de que, nos termos acima expostos, é titular.
Por quanto se expôs, impõe-se concluir que a norma nos termos da qual a condenação em pena de 1 (um) ano de prisão suspensa na sua execução e não transcrita obsta inelutavelmente à aquisição da nacionalidade portuguesa por parte de um cidadão que, em face de diversos fatores constitucional e jus-internacionalmente relevantes, possui um vínculo efetivo com a comunidade portuguesa, é inconstitucional, na medida em que constitui uma restrição desproporcional do direito fundamental de acesso à cidadania portuguesa.
13.
Quando da aplicação do requisito negativo em apreço resultar ope legis a impossibilidade de ver deferida uma pretensão (de aquisição da cidadania portuguesa) que, nos termos expostos, convoca a aplicação dos artigos 18.º, n.os 2 e 3 da Constituição, não poderá também deixar de entender-se que a norma de que decorre esse requisito ofende também o artigo 30.º, n.º 4, da Lei Fundamental, em termos semelhantes aos que se acolheram no Acórdão n.º 331/2016 (embora se estivesse aí perante uma dispensa de pena e não perante uma suspensão da execução de pena):
«Conforme resulta da jurisprudência constitucional (ver, por exemplo, Acórdãos n.ºs 327/99, de 26 de maio, 176/00, de 22 de março, e n.º 154/04, de 14 de março [...]), os efeitos da pena estão submetidos não apenas aos princípios-garantia das penas e medidas de segurança, como também ao princípio da proporcionalidade, «no sentido de que qualquer "efeito (acessório) da pena" pressupõe, por um lado, uma certa gravidade do facto praticado e, por outro, uma fundada conexão entre o efeito (o direito que deve ser declarado perdido) que se quer determinar e o facto criminoso praticado. Nestes termos, seria inconstitucional uma lei que, p. ex., privasse do direito de voto quem fosse condenado por um qualquer crime» (cfr. DAMIÃO DA CUNHA, "Anotação ao artigo 30.º", in JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª ed., Coimbra: Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, p. 686).
O disposto no n.º 4 do artigo 30.º da CRP implica, portanto, uma proibição de o legislador consagrar critérios legais nos termos dos quais decorra, de uma forma automática, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, em virtude de uma pena aplicada.
Mais concretamente, naquilo que importa para o presente caso, se não resultam dúvidas de que é a própria Constituição que comete ao legislador a tarefa de concretizar o direito a aceder à cidadania portuguesa, o que foi feito desde logo pela Lei da Nacionalidade, e que cabe ao legislador, nessa tarefa, a ponderação das conexões relevantes com o Estado português e os critérios que lhes presidem, o legislador está igualmente impedido de criar critérios legais de acesso ao vínculo jurídico da cidadania portuguesa que impliquem, em virtude de uma pena aplicada, a perda automática de direitos civis, profissionais ou políticos.
(...)
Ora, em face da proibição constitucional de perda automática de direitos civis em virtude da aplicação de uma pena, o julgador, na apreciação do preenchimento do critério de acordo com o qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, não pode estar impedido, em toda e qualquer situação, de valorar as demais circunstâncias associadas à condenação pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, designadamente a efetiva execução da pena aplicada, o tempo que mediou entre a prática do crime e a decisão proferida, a eventual reincidência ou a perseverança na prática criminosa, a ocorrência da extinção da pena, a dispensa de pena.
Nestes termos, se é indiscutível que a tarefa de enunciação dos critérios e pressupostos para a atribuição e aquisição da cidadania está constitucionalmente reservada ao legislador parlamentar (cfr. alínea f) do artigo 164.º da CRP), mesmo que este resolva consagrar um critério objetivo (partindo da condenação por crimes cuja moldura penal se fixou a partir de determinado limite), que resulte da sua própria ponderação (por via geral e abstrata), esse critério também não pode violar o disposto no n.º 4 do artigo 30.º da CRP. Pode suceder que o critério estabelecido, por mais objetivo que seja, se venha a mostrar sobre ou subinclusivo à luz do caso concreto, abrangendo situações que o legislador não terá considerado ou não abrangendo situações que este certamente terá considerado.»
Por conseguinte, também à luz do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição é de julgar inconstitucional a norma que constitui objeto do presente recurso, na medida em que não permite ponderar «as circunstâncias do caso concreto em que o próprio legislador desvalorizou os ilícitos penais em causa», tais como as circunstâncias que permitem determinar a suspensão da execução da pena de prisão (previstas no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal) e a não transcrição da condenação para os certificados de registo criminal requeridos para fins de emprego, de exercício de profissão ou atividade ou outros fins (ao abrigo do artigo 17.º da Lei n.º 57/98, na redação dada pela Lei n.º 144/2009, de 22 de setembro, vigente à data relevante para os efeitos dos presentes autos).